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Calldas 15 média de superlotação de 65,8%. E as denúncias de violações de direitos humanos, tanto das pessoas em privação de liberdade como de seus familiares, abundam: violência e tortura, discriminação, assédio, alimentação inadequada, falta de acesso à saúde, educação e trabalho, revista vexatória, para citar apenas algumas. Quais providências a Corte tem exigido? A Corte IDH determinou que o Brasil adotasse uma série de medidas provisórias relativas a vários de seus estabelecimentos de detenção e unidades de internação socioeducativa – como o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, Complexo Penitenciário de Curado, Penitenciária de Urso Branco, entre outros – com o intuito de assegurar os direitos humanos das pessoas que ali se encontram em privação de liberdade ou sob medidas socioeducativas, particularmente os direitos à vida e à integridade pessoal. Em todas essas oportunidades, pode-se verificar a situação de manifesta e profunda violação dos direitos humanos mais básicos em que se encontra o sistema carcerário brasileiro. Como o senhor, que foi membro da Comissão de Ética da Presidência da República, avalia os atuais acontecimentos no cenário político brasileiro? A comunidade internacional vem acompanhando o que está se passando no Brasil nos últimos meses. O anúncio prévio dos votos pelos parlamentares, no julgamento de abertura do processo de impeachment que se deu na Câmara dos Deputados, de modo muito particular, suscitou vários questionamentos. Igualmente na admissibilidade pelo Senado. Isso porque o julgamento já havia acontecido antes mesmo da sessão: os julgadores e julgadoras vinham anunciando seus votos, os partidos determinando como as bancadas deveriam votar, enfim, a decisão já estava consumada antes de se realizar a sessão. Ainda que o processo de impeachment seja político, isso não permite que se prescinda da observância de princípios e direitos fundamentais, tais quais a ampla defesa e a imparcialidade do órgão julgador. A Corte IDH já teve oportunidade de se manifestar, em algumas ocasiões, sobre a aplicação do devido processo legal a situações em que há um julgamento político. Um deles foi o do Tribunal Constitucional vs. Peru, julgado em 2001, que tratava de três magistrados do Tribunal Constitucional Peruano que foram vítimas de uma denúncia constitucional por terem se posicionado a respeito de uma lei de reeleição presidencial durante o governo de Alberto Fujimori. Os referidos magistrados foram processados pelo Congresso e destituídos de seus cargos no Tribunal Constitucional. A Corte determinou que nesse tipo de matéria – juízo político – “o indivíduo tem também o direito, em geral, ao devido processo que se aplica em matéria penal” (p. 40 do acórdão), e que “qualquer órgão do Estado que exerça funções de caráter materialmente jurisdicional tem a obrigação de adotar resoluções que observem as garantias do devido processo legal nos termos do artigo 8º da Convenção Americana” (p. 41 do acórdão). Nesse sentido, e a partir da jurisprudência consolidada da Corte que presido, vejo os acontecimentos recentes no Brasil com bastante preocupação. Estão em jogo a democracia e os princípios fundamentais que garantem o seu funcionamento, democracia essa que o país se obrigou a preservar ao ratificar a Carta Democrática Interamericana. O Brasil já foi punido pela Corte em algumas questões. Há novos processos em andamento? Em fevereiro deste ano realizamos a audiência pública do caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, que trata da suposta omissão e negligência do Estado brasileiro em investigar, de forma diligente, a prática do trabalho forçado e a escravidão por dívidas na referida fazenda, localizada no norte do Pará, assim como o desaparecimento de dois de seus trabalhadores. Nos próximos meses, a Corte IDH deverá sentenciar o caso. Ainda temos, na pauta de processos para este ano, o Caso Favela Nova Brasília, que trata das execuções extrajudiciais de 26 pessoas, incluindo seis crianças e adolescentes, no contexto das operações realizadas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995. Tais mortes foram justificadas pelas autoridades policiais com apoio nos chamados “autos de resistência à prisão”. Também muito importante, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos remeteu à Corte, no dia 22 de abril, o caso Vladimir Herzog e outros, que trata da responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, durante a ditadura militar, e pela situação de impunidade em que permanecem os fatos em razão da Lei de Anistia. O senhor avaliou que o Brasil vai julgar nula a Lei de Anistia. Ela é uma ofensa aos direitos humanos? A questão da Lei de Anistia brasileira já foi examinada pela Corte Interamericana, no caso da “Guerrilha do Araguaia”, em novembro de 2010. O Estado brasileiro foi condenado pelo desaparecimento de 62 pessoas no período de 1972 a 1974, e explicitamente questionouse a aplicação da anistia a crimes “imprescritíveis”. Assim, lastreada na Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte entendeu que essa lei é nula de pleno direito. Sob a ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não pode haver acordo quanto a crimes de lesa-humanidade. E mais: no caso brasileiro, os chamados crimes de sangue ou crimes que seriam contra direitos humanos perpetrados por “guerrilheiros” ou “subversivos” (como eram chamados) não foram anistiados. Todos que sobreviveram cumpriram pena. O que não pode haver é anistia de agentes de Estado, que é autoanistia em crimes de lesa-humanidade. Podendo reformar decisões de tribunais superiores de países, por qual motivo a Corte IDH ainda enfrenta resistência? Eu não diria que a Corte enfrenta resistência. Existem dificuldades, seja dos países aceitarem que o Jornal do Advogado – Ano XLI – nº 417 – Junho de 2016 SÃO PAULO mundo globalizado é um mundo de direitos que estão além e acima das fronteiras territoriais, seja ainda em razão da alardeada soberania nacional não poder ser mais concebida como o poder dos estados de atuar sobre ou contra direitos sem contestação nos seus limites territoriais. A defesa e o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos são um marco histórico que não pode mais retroceder, acima de situações nacionais ou legislações que os desrespeitem. Não se trata, portanto, de resistências à Corte, mas de dificuldades ao processo de ampliação de garantias para que os estados observem e implementem os direitos humanos que eles próprios reconheceram como válidos em seus territórios, por meio da assinatura e ratificação de tratados e convenções internacionais. Tem sido recorrente sua reclamação de que gerações de brasileiros foram formadas sem estudar Direitos Humanos e Direito Internacional. Essas matérias devem ser obrigatórias? Não apenas obrigatórias, é essencial buscar uma formação qualificada na área de direitos humanos com conteúdo relevante para tal. Nós viemos de períodos autoritários em que a matéria de Direitos Humanos era absolutamente proibida nas faculdades de Direito. Viemos de gerações, inclusive a minha, que não teve a oportunidade de ter na faculdade sequer como disciplina optativa. Isso também vale para a disciplina de Direito Internacional. Era algo superficial, era o Direito Internacional privado – para o comércio –, ou o Direito Internacional público superficial, para as organizações internacionais, mas nada que se dispusesse a aprofundar a declaração internacional de Direitos Humanos, a declaração americana sobre Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos – que afinal é de 1979. O que a OAB pode fazer para contribuir? Eu me recordo, quando era conselheiro da OAB (2007-2010), que o então ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, solicitou-me que buscasse uma reunião com o presidente da OAB para que as provas do Exame de Ordem passassem a ter questões sobre Direitos Humanos de modo a mover as universidades a disponibilizarem e a qualificarem as disciplinas sobre esse tema. Como disse, não basta tornar essas disciplinas obrigatórias e inserir questões relativas a elas nas provas da Ordem, se não se atentar para o fato imprescindível de que elas devem ter um conteúdo crítico e atual. É dizer, é importante não apenas que alunos estudem conteúdos de tratados e convenções e recomendações que tratam dos direitos humanos, mas que também aprendam como esses instrumentos vêm sendo interpretados, como se obtém sua aplicação e efetivação, como se demonstra sua violação pelos estados. Para isto, estudar a jurisprudência e o andamento dos casos levados à Corte IDH é fundamental. “Sob a ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não pode haver acordo quanto a crimes de lesa-humanidade”


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