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EM QUESTÃO Jornal do Advogado – Ano XLI – nº 411 – Novembro de 2015 SÃO PAULO OAB confere título de advogado a Luiz Gama Escravo liberto, o rábula Gama percebeu o valor do Direito para a sociedade quando conseguiu a própria liberdade por meio do conhecimento das leis Poderia ser classificado como combativo defensor das leis que peticiona – com devida vênia – instando o magistrado nos seguintes termos: “Respeita o Direito e cumpra seu rigoroso dever, para o que é pago com o suor da nação”. Acrescente à cena o fato de o autor do processo em curso tratar, dezenove anos antes da Lei Áurea, da libertação de um escravo negro (1869). E, mais ainda, o proponente da lide ser um rábula e escravo negro liberto. Ousadia suficiente em qualquer tempo, ainda mais no século XIX. Essa passagem resume bem o que Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) representou para a sociedade paulistana e a história do país. No caso descrito, foi aberto outro processo, por injúria e difamação, no qual Gama promoveu a própria defesa e conseguiu absolvição após um julgamento concorrido, com o Tribunal do Júri da Província de São Paulo tomado pelo público. O feito ganhou as páginas do jornal “Correio Paulistano”, na edição de 31 de dezembro de 1870. A trajetória singular e de vínculo estreito com o Direito mereceu o reconhecimento da Ordem dos Advogados do Brasil e fez com que o Conselho Federal e a Secional paulista da Ordem lhe conferissem o título póstumo de “profissional da advocacia”, mesmo que 150 anos após sua brilhante atuação como rábula. A celebração desse ato, por uma feliz coincidência da história, mereceu entrega de placas para o tataraneto de Gama, Benemar França, no Auditório Ruy Barbosa, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Contemporâneos, Luiz Gama e Ruy Barbosa fizeram parte do grupo que fundou o jornal Radical Paulistano e a loja maçônica América. “Luiz Gama foi o advogado dos advogados brasileiros, foi o que mais externou a função ao fazer justiça e ser o instrumento do cidadão na busca pela Justiça”, disse Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da OAB, durante a solenidade, no dia 3 de novembro. O conselheiro federal e diretor de Relações Institucionais da OAB SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, representou a Secional paulista no ato histórico. Saga pessoal Ainda jovem, Luiz Gama percebeu o valor do Direito para a sociedade, quando conseguiu a própria liberdade por meio do conhecimento das leis. Filho de Luiza Mahin, escrava liberta, viu a mãe ser presa e desaparecer no exílio, após participação na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837-1838). Ficou sob os cuidados do pai, um fidalgo português, que o vendeu como escravo, com dez anos de idade, negócio que o levou da Bahia para a cidade de Lorena (SP). Aos 17 anos de idade é alfabetizado pelo estudante Antônio Pereira Cardoso e, um ano depois, toma ciência e consegue provas de que sua condição de escravo é ilegal e foge. Não sendo perseguido ou incomodado pelo ordenamento jurídico da época, o filho de uma mulher livre não poderia tornar-se escravo. Na capital da província, São Paulo, alistou-se na Guarda Nacional e começou a frequentar como ouvinte aulas do curso de Direito do Largo São Francisco. Dadas circunstâncias da época, não é aceito e, sem a matrícula, não conclui o curso. Autodidata, dedicou-se ao estudo do Direito, enquanto ganhava a vida como escrevente e, assim, avançou até começar a destacar-se em produção literária e jornalística, com a publicação do livro “Primeiras trovas burlescas de Getulino” (1859) e a fundação do jornal Diabo Coxo (1864), primeiro periódico humorístico ilustrado de São Paulo. Em 1869, consegue autorização para advogar em primeira instância. O rábula Luiz Gama tem como principal área de atuação processos de libertação de escravos. Não há registro histórico fidedigno apontando o número de pessoas que conseguiram sua liberdade pelas mãos dele, mas os apontamentos disponíveis oscilam entre 500 até mil casos. Combate à escravidão Abolicionista, Gama não foi um homem monotemático, militando em favor de diversas outras causas. Defensor da instalação de uma República, tomou atitudes que revelaram sua visão clara de que escravidão e democracia não eram compatíveis, como quando abandonou a convenção de Itu (1873), evento de fundação do Partido Republicano Paulista, ao verificar a presença de cafeicultores contrários ao fim da escravidão. Também impressionam os relatos sobre o impacto de sua morte na sociedade paulistana. Falecido em 24 de agosto de 1882, ele teve o cortejo acompanhado por uma multidão, que percorreu aproximadamente seis quilômetros, saindo de sua casa no Brás até o Cemitério da Consolação. Há registros que apontam a presença de até quatro mil pessoas, o que equivaleria a 10% da população estimada da época. Além da entrega do título póstumo de profissional da advocacia, o evento na Universidade Mackenzie reproduziu parte desta caminhada, indo do campus até o local do sepultamento. Entre outras homenagens e atos de reconhecimento da importância de Luiz Gama para a história brasileira, estão o busto no Largo do Arouche (centro de São Paulo) e a condição de patrono da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Letras. 6


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