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Casella 15 Jornal do Advogado – Ano XLIII – nº 428 – Junho de 2017 SÃO PAULO “O Brasil evoluiu na questão dos refugiados com a nova Lei de Migração, de maio de 2017, em relação ao Estatuto do Estrangeiro, de 1980” O novo governo francês pode implicar em mudanças nas relações diplomáticas com o Brasil? Provavelmente a boa relação atual será mantida. Há, historicamente, muita cooperação em vários campos entre Brasil e França, de governo a governo. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, teve um peso grande as missões de universidades francesas que vieram e fundaram a USP com grandes nomes como Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel e outros que durante anos ensinaram no início da vida da Universidade de São Paulo. O presidente dos EUA, Donald Trump, segue revogando acordos internacionais celebrados pelo antecessor, Barack Obama. Um país pode abandonar o que foi pactuado sem prejuízo ou sanção? Não há como obrigar um Estado a permanecer num acordo quando ele não tem mais interesse em participar. É importante lembrar que a parceria Transpacífico e o acordo de Paris sequer estavam implementados o que permite a saída de um Estado. A saída do Reino Unido da União Europeia, com o Brexit, é outro cenário do ponto de vista teórico e conceitual, algo que vai ser estudado e compreendido. No caso Trump, o que vejo é uma vontade de desconstruir o legado do antecessor, Barack Obama, que resgatou o engajamento dos EUA com os valores democráticos, o Estado de Direito e os direitos humanos, revendo posições históricas ultrapassadas, herdadas de George W. Bush. Além do Transpacífico e do acordo de Paris, temos os acordos recém-revogados com Cuba e Irã. No segundo caso, há um histórico de fracasso no uso da força no Afeganistão e no Iraque e não há condições de sustentar uma terceira frente no Irã, que é maior e mais complexo. O fim das sanções contra o Irã, promovido por Obama, mediante o compromisso de fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica, era positivo e acabar com esse diálogo traduz uma visão de mundo ultrapassada, obsoleta. Por que esse discurso contrário à interação e às parcerias multilaterais é ultrapassado? Curiosamente, os Estados Unidos são exemplo disso. Atingiram um patamar de prosperidade trazendo pessoas capacitadas de diferentes países para trabalhar em seu território, assim alcançando excelência em muitos campos do conhecimento, da tecnologia e da ciência. Esse é um exemplo de que o discurso de isolamento é inviável para qualquer país. Veja o flagrante caso de fracasso da Albânia, de Enver Hoxha, que adotou política de isolacionismo, no século passado. Hoje, há uma realidade de capilaridade e permeabilidade da economia, de circulação de capitais, trânsito de pessoas, avanço da tecnologia. Além disso, o combate de problemas transnacionais como poluição, doenças, crime organizado e terrorismo demanda parcerias. Os Estados Unidos precisam estar em rede, não só com seus vizinhos Canadá e México. É um discurso que não para em pé, vende a ideia da América grande e em primeiro lugar, mas você não constrói boas parcerias dizendo que vai defender só o próprio interesse: você sempre tem de negociar. O processo de saída do Reino Unido da União Europeia é outro movimento que chama a atenção. O eleitor britânico começa a perceber que a saída da UE pode ser prejudicial? Acho que começam a perceber que foi um passo errado, pelas questões que terão de enfrentar. Há um milhão de britânicos vivendo em outros países da UE e cerca de três milhões de europeus vivendo no Reino Unido, como vão ficar essas pessoas? Outra questão é o desejo de manter Londres como praça financeira, mas ao mesmo tempo com total independência, o que deve gerar um ponto de conflito em algum momento. Vai ficar claro que é algo contraproducente para o Reino Unido e para a UE. Mas quero chamar atenção para um ponto, tanto no caso da eleição de Donald Trump quanto no Brexit. É fácil criticar o eleitor que fez essas escolhas quando o seu emprego não está ameaçado pela globalização. O meio oeste americano e o norte da Inglaterra, que eram zonas de indústria antiga, passaram por um processo de desindustrialização ou mudança na forma de atuar da indústria, com fuga de empregos para outros países. Para as pessoas atingidas por esse processo, irreversível e sem possibilidade de trazer aqueles empregos de volta, não é tão fácil como para quem olha de fora. A questão do trabalho suscita uma das crises que os países podem enfrentar no futuro: crise de alimentos, de escassez de água e de catástrofes naturais. A cooperação internacional, por meio de organizações como ONU, OMC, OMS e FAO, pode concretamente evitar ou enfrentar essas crises? Cooperação internacional é sempre difícil, mas trabalhar junto é indispensável. Achar um ponto de equilíbrio e de consenso para a atuação conjunta é complicado, especialmente com um grupo extenso de Estados, mas essa é a única forma de enfrentar e resolver problemas dessa magnitude. A questão da degradação dos recursos naturais do planeta, o aumento da lista de espécies ameaçadas de extinção e o controle da emissão de poluentes exigem um trabalho consciente e engajado não só dos governos. Não devemos esperar grandes mutações de atitudes dos governos, que tendem a se preocupar, sobretudo, em permanecer no poder. A história brasileira também mostra que as principais mudanças vêm da sociedade civil, com mobilização ao lado do governo, independente do governo ou até contra o governo, em que se diz: algumas coisas dependem da nossa união para que o estrago não seja maior daqui algum tempo. Outro lado desse discurso com viés nacionalista é a reprovação das políticas de assistência aos migrantes e refugiados. Essa visão, contaminada por xenofobia, também é ultrapassada? Há um relatório da OCDE que coloca a questão dos migrantes e refugiados como um problema de curto prazo para o país que os recebe, sustentando que a entrada dessas pessoas pode ser positiva para a economia, na medida em que consigam se inserir na sociedade. É preciso investir em esforços, como Alemanha e Noruega que estão orientando refugiados com culturas diferentes sobre os valores e liberdades respeitados nesses países. Nessa questão, o Brasil evoluiu com a nova Lei de Migração, de maio de 2017, em relação ao Estatuto do Estrangeiro, de 1980. As manifestações de rua contra a nova lei, mesmo convocadas por grupos pequenos e sem representatividade, suscitaram reações e intolerância que me deixaram estupefato. Colocaram a questão como uma ameaça aos empregos dos nacionais, quando o contingente de refugiados que procura o Brasil é pequeno. O Brasil acolheu um primeiro grupo de sírios que não chega a 3 mil pessoas, assistidas pela comunidade síria que já existia aqui. O BRICS volta a ser observado com mais atenção devido à nova perspectiva de ciclo de crescimento econômico da China. O que representa uma retomada de força desse bloco? Acho que a iniciativa que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul é interessante, uma grande mudança do contexto internacional ocorrida em tempo de paz. As grandes reformas, normalmente, ocorreram depois de guerras, como a criação da ONU, após a Segunda Guerra Mundial. O BRICS é uma mudança sem guerra armada no sentido clássico, mas numa guerra econômica, com clara vontade de mudar o sistema financeiro internacional. Me agrada a proposta do bloco para alcançar uma ordem internacional regida pelo Direito Internacional, tendo a ONU como centro do sistema. Por outro lado, é um pouco desapontador e preocupante ver o descompasso entre o discurso e a ação, no caso da Rússia com a ocupação na província da Crimeia e, no caso da China, a controvérsia com o Japão sobre as ilhas Diaoyu e Senkaku. Confira a íntegra da entrevista


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