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Adorno 15 Jornal do Advogado – Ano XLIII – nº 436 – Março de 2018 SÃO PAULO “Em sociedades que levam a sério os problemas relacionados à segurança pública, é possível desenhar cenários de evolução” têm de ser equacionadas de outra forma, requalificando os termos do pacto federativo. É preciso que o governo central desempenhe funções de coordenação, orientação, formação de recursos humanos especializados e outras matérias afins, enquanto os governos estaduais, sem perder completamente a autonomia assegurada pela Constituição, possam acolher essas diretrizes gerais e com planejamento e organização para melhorar a qualidade dos serviços de segurança pública. Lembro que houve experiências de Planos Nacionais de Segurança, especialmente nos governos FHC e Lula da Silva, que buscaram justamente reequacionar as relações entre os governos federal e estaduais. Os planos eram bem formulados e até ambiciosos, porém não lograram êxito. A perspectiva para os próximos anos é de contenção, queda ou elevação dos índices de criminalidade? É difícil dizer, mas somos levados a pensar que o pior está por vir, pois passamos por restrições orçamentárias, que afetam o contingente de pessoal necessário para conter a violência dentro dos marcos do estado de direito, as condições adequadas de trabalho nas delegacias e nas demais agências que compõem o sistema de justiça criminal. Em sociedades que levam a sério os problemas relacionados à segurança pública, é possível desenhar cenários de evolução. Para tanto, há recursos materiais e pessoal qualificado para análise de dados, acompanhamento de casos, avaliação das tendências do crime e da ação de seus principais protagonistas. Com isto é possível dizer algo como: se nada for feito nos próximos cinco anos, o quadro será de agravamento de situações-limite; ou, se houver investimentos em aperfeiçoamento de pessoal especializado, em novas tecnologias de coleta e análise de informações é possível prever tendências e inclusive planejar redução de crimes, proteção de vítimas potenciais etc. No Brasil, até onde conheço, não há esse tipo de planejamento. Por que o discurso de emprego de mais força estatal para combater a violência faz tanto eco no eleitorado brasileiro? Esse discurso não é exclusivamente brasileiro, encontrando-se mesmo presente em sociedades com democracias consolidadas. No Brasil, há de se fazer, ao menos, duas considerações. Inicialmente, o problema não é em si o uso da força pelas agências encarregadas de lei e ordem, porque tal prerrogativa está prevista nas normas constitucionais. O problema é a recorrência ao uso abusivo da força que produz mortes injustificáveis, seja de pessoas incriminadas e já condenadas seja de cidadãos e cidadãs inocentes. Em segundo lugar, esse discurso, amplamente disseminado entre diferentes classes e grupos sociais, se expressa socialmente como via de mão única como se não houvesse encaminhamentos e saídas alternativas. É paradoxal que esse discurso tenha forte presença entre aqueles que pertencem aos estratos socioeconômicos de baixa renda, mais vulneráveis ao emprego abusivo da força na contenção do crime, cujas vítimas fatais são, em grande maioria, jovens do sexo masculino, na faixa etária de 15 a 29 anos, com maior incidência entre negros e pobres. Como sair dessa via de mão única, como combater essas falas que pregam o combate ao crime com uso da força sem limites, como enfrentar esse discurso monolítico de grande parte dos congressistas? É preciso construir alternativas, articulando proteção de direitos humanos com garantia de lei e ordem. A cultura de direitos humanos não pode se omitir de tratar de questões relacionadas à lei e à ordem, inclusive defesa de policiais mortos em confrontos com bandidos. Por sua vez, os defensores de lei e ordem não podem ver a cultura de direitos humanos como um obstáculo. Precisamos reinventar uma nova economia de discursos, que chegue aos ouvidos dos cidadãos e os faça compreender que as posições monolíticas, desde há muito tempo, não resultam em ganhos tampouco em maior sensação de segurança. É preciso importar experiências internacionais de êxito, dar maior atenção aos resultados de pesquisas sérias que apontam problemas e suas soluções, ampliar os interlocutores no campo da segurança – policiais, civis e militares, promotores, juízes, formadores de opinião, educadores, especialistas em organização e em recursos humanos. As políticas de segurança pública tradicionais dos Estados brasileiros têm um erro sistêmico, replicado na maioria deles? As políticas públicas de segurança, em quase todos Estados da federação, insistem sempre nas mesmas diretrizes: caçar bandidos conhecidos, cercar os bairros onde habitam trabalhadores de baixa renda, prender pequenos traficantes, investigar casos de autoria conhecida, selecionar as ocorrências que devem merecer maior atenção das agências encarregadas de conter os crimes. O resultado já conhecemos: encarceramento em massa de jovens pretos e pobres candidatos às fileiras do crime organizado, superpopulação dos presídios, degradação das condições de vida nas prisões e hiato entre os recursos humanos e as tarefas de gerir imensas massas carcerárias. Esse último fator leva à perda do controle no interior das prisões que, em contrapartida, é assumido pelas facções que dominam o crime organizado. Não há nenhuma imaginação nesse campo. O fracasso é sua tônica, a insegurança geral sua moeda de troca. Uma revisão do Estatuto do Desarmamento, com facilitação do acesso às armas de fogo, teria quais consequências? Em uma palavra, aumentaria o número de mortos decorrentes de confronto entre civis, e entre civis e as polícias. Conheço vários estudos que exploram as relações entre taxas de homicídio e emprego de armas de fogo. Embora haja diferenças metodológicas entre muitos deles, cada vez são mais sofisticados e embasados em modelos estatísticos complexos. Os resultados caminham sempre na mesma direção. O acesso livre às armas de fogo potencializa as oportunidades de confronto e de desfechos fatais, aumentando o número e a taxa de homicídios. Portanto, há sólido argumento para controle rigoroso do acesso às armas de fogo em circulação. A política carcerária brasileira segue um modelo equivocado? Sim, está na contramão das tendências internacionais. Há hoje no Brasil cerca de 720 mil presos, em distintas condições. O Brasil é o terceiro país do mundo com maior população prisional. Paradoxalmente, as taxas de impunidade são muito elevadas. No mundo, a tendência é reduzir o encarceramento em massa. A pena de prisão (supressão temporária da liberdade) deveria ser destinada tão somente aos casos de elevadíssima gravidade com claras indicações de dificuldades, mesmo que possam ser amenizadas ou neutralizadas em futuro próximo, de reinserção na vida associativa em geral. Para isso, seria preciso uma mudança bastante radical no sistema de justiça criminal (penal), com enfrentamento da fragmentação institucional que hoje configura o fluxo polícia-ministério público- -tribunais de justiça-prisões. A maior parte dos crimes – furtos e atos de menor gravidade – deveria ser tratada em instâncias judiciais especializadas com simplificação do processo penal e com medidas alternativas (restrição de direitos, multa, prestação de serviços) que, no entanto, precisam ser fiscalizadas para garantir seu cumprimento e eficácia. De igual modo, seriam tratados os crimes relacionados ao porte, consumo e tráfico de drogas. O custo de manter esses autores em regimes fechados, por longa data, já demonstra sua irracionalidade. Por fim, todos os agentes implicados na segurança pública deveriam sentar à mesa e preparar planos periódicos de ação visando prevenção da violência e dos crimes. As legislações penal e processual penal brasileiras precisam de uma reforma? Como sociólogo, entendo que o processo penal e o sistema de justiça correspondente constituem uma espécie de arena de disputas em que uns, mesmo em nome dos preceitos legais e das tradições judiciais, tendem a se impor sobre outros protagonistas. Muitas vezes, o excesso de formalidades, mesmo que em nome das garantias, acaba por obscurecer a enorme fragilidade em que se encontram os criminosos comuns procedentes dos estratos socioeconômicos de baixa renda e moradores preferencialmente dos bairros que compõem a periferia das regiões metropolitanas. Como sociólogo, penso que é preciso reequilibrar as forças em disputa. Em linhas gerais, a partir de um estudo criterioso, os objetivos a serem alcançados com uma eventual reforma seriam: a) simplificar procedimentos burocráticos sem prejuízo às garantias de quem quer que tenha sido convertido em réu; b) reduzir as taxas de impunidade, porém com apelo prioritário às penas alternativas à prisão que possam ter efeitos na vida civil e cotidiana de quem quer que tenha sido condenado. Trata-se de enfrentar simultaneamente dois gargalos: impunidade penal e focalização excessiva no encarceramento. Com isto, será possível aumentar a credibilidade dos cidadãos na justiça e em seus aplicadores. A desmilitarização da polícia é necessária? É preciso sempre qualificar o que se entende como militarização. Certamente, uma das demandas dos estudiosos e pesquisadores da área é a unificação das polícias, o que significaria unificar as operações de vigilância, contenção dos crimes, investigação e indiciamento de criminosos. Certamente, há vários modelos a serem estudados e examinados. Há polícias civis que usam uniformes, portam armas e obedecem rigorosas normas de conduta. O que precisa ser recusado e criticado é a subordinação do modelo das polícias militares enquanto forças auxiliares do Exército.


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