C
22
SAÚDE
Círculo da violência
Apesar de existirem leis protetivas às
mulheres, a situação no Brasil não melhora;
dados apontam um ato de agressão a cada
quatro minutos contra o sexo feminino
Criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) completou
12 anos em agosto. Embora em vigência e com complemento
posterior da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/15), que a
acompanhou no sentido de criar políticas e tornar mais graves
as punições decorrentes de agressões às mulheres, essa
violência de gênero ainda não foi erradicada e gera nas suas
vítimas sofrimentos e adoecimentos de níveis físicos e mentais,
alterando de forma dramática seu bem-estar e convívio social.
Uma parcela considerável da população feminina já sofreu
agressão sexual, física ou psicológica por um parceiro íntimo
na vida. Dados do último Mapa da Violência – Homicídio de
Mulheres no Brasil (2015), que reúne os atendimentos promovidos
na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) mostra que,
por ano, os atendimentos às vítimas somam 147.691 registros.
Isso significa que um ato de violência contra elas é cometido
a cada quatro minutos.
Apesar disso, é raro o ato violento tornar-se conhecido.
Quando a vítima procura os serviços de saúde, dificilmente
revela espontaneamente os episódios de violência pelo qual
passa ou passou em casa. Diversas razões justificam essa
postura. Não raro elas se sentem envergonhadas, humilhadas
e até culpadas pela situação. O medo do julgamento alheio, a
dependência econômica ou afetiva do agressor ou até mesmo
o fato de já terem vivenciado respostas ruins das instituições
públicas que deveriam zelar pela sua integridade podem inibi-
-las de falar a respeito.
Mais grave é quando a vítima não reconhece as agressões do
parceiro como violência. Para a professora do Departamento de
Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (FMUSP), Ana Flávia D’Oliveira, que pesquisa a violência
de gênero bem como os serviços de saúde focados na mulher,
permanece inerte na nossa cultura a ultrapassada e perigosa mentalidade,
na qual o homem comporta-se como ser dominante e a
mulher um ser submisso. “Realizar pesquisas com mulheres que
sofrem de violência doméstica é um desafio pela forma subjetiva
que elas entendem a violência, por vezes naturalizada nos papéis
sociais aprendidos sobre homens e mulheres e que não são nomeados
como atos de violência. Por isso, quando realizamos pesquisas
nessa área, utilizamos perguntas sobre atos bem definidos, como:
‘ele já te empurrou?’”, descreve a professora.
Define-se como violência doméstica qualquer ato de agressão física
(tapas, empurrões, chutes, bofetadas, tentativa de asfixia, tentativas
de homicídios, puxões de cabelo, beliscões, mordidas, queimaduras),
sexual (expressões verbais ou corporais que não são do
agrado da pessoa, toques e carícias não desejados, exibicionismo
e voyeurismo, prostituição ou participação forçada em pornografia)
ou emocional e psicológica (humilhações, ameaças de agressões
físicas, privação da liberdade ou de contato com amigos e familiares,
danos propositais a objetos pessoais, malefícios a animais de
estimação da vítima, humilhações ou ameaças a pessoas próximas
à vítima), que ocorram dentro do lar, perpetrado por um indivíduo
com quem se tenha ou se teve um relacionamento.
Apesar dos parceiros homens serem os agressores mais comuns, é
importante destacar que eles não são os únicos. Os agressores podem
ser parceiras mulheres, ex-parceiros(as), tios(as), filhos(as),
ou qualquer parente que resida sobre o mesmo teto da vítima. Além
disso, a violência doméstica é uma triste realidade que também
pode atingir homens e crianças.
No caso das mulheres, que são as maiores vítimas hoje, essas
situações constantes de violência doméstica levam a um sofrimento
crônico que a debilita por completo. Estudos mostram que elas
ficam mais propensas a abusarem do álcool, tabaco e de outras
drogas, a fazerem sexo sem segurança, darem entrada tardia no
pré-natal e a não aderirem ao esquema de prevenção dos cânceres
de mama e do colo do útero.
Outros sintomas que se mostram consistentemente associados
à violência de gênero e, quando observados deve-se suspeitar
do problema e introduzir ativamente o assunto, são síndrome do
pânico e transtorno de estresse pós-traumático (além de outros
transtornos repetitivos), infecção urinária de repetição (sem causa
secundária encontrada), dor pélvica crônica, síndrome do intestino
irritável, transtornos na sexualidade, abortos de repetição, depressão,
ansiedade, tentativas de suicídio e lesões físicas que não se
explicam de forma adequada.
Se não forem abordadas sobre essa infeliz possibilidade, dificilmente
a mulher terá a enfermidade adquirida curada, ainda que
se trate de patologia simples e bem conhecida, alerta a enfermeira
Stephanie Pereira, que também é mestranda pela Universidade de
São Paulo em violência contra a mulher. “As mulheres que vivenciam
violência tendem a procurar mais os serviços de saúde, com
queixas vagas que dificilmente fecham um diagnóstico e acabam
ficando conhecidas nos serviços como ‘hiperutilizadoras’. Se
recebe um diagnóstico de saúde mental, por exemplo, esse pode
ser estigmatizado. Ela pode ainda ser medicada em excesso, sendo
que seus sintomas raramente melhoram nesses casos”, observa.
Esse uso repetitivo e ineficaz do serviço de saúde repercute também
nos custos do sistema.
Qualquer profissional de saúde bem treinado pode abordar uma
possível vítima sobre o problema, seja médico, enfermeiro, psicólogo
ou mesmo assistente social que esteja no ambiente hospitalar.
O importante é que ele domine as técnicas de conversa e tenha um
bom conhecimento inclusive das referências existentes no âmbito
jurídico, policial, do serviço social, da psicologia e outros serviços
e instituições que possam ajudar e apoiar a mulher de maneira
extra-hospitalar. Já os diagnósticos de possíveis enfermidades
mentais e físicas, é claro, são dados por um médico.
A partir daí as vítimas identificadas costumam ser acompanhadas
de forma multiprofissional. Recomenda-se ainda a introdução delas
nos serviços de assistência social, jurídica e policial destinados para
tais casos. De qualquer modo, cada caso precisa ser pensado em
sua particularidade, sempre respeitando-se a autonomia da mulher
em saber o que é melhor para ela e quais passos deseja dar.
Arquivo