Capítulo da
história da música
brasileira escrito
por um advogado
A não ser nas raras rodas bem aculturadas musicalmente,
as gerações mais novas talvez não
saibam o que vem a ser o jequibau, ritmo sem par
no mundo criado por Mário Albanese e Ciro Pereira
em 1965. Choro? Jazz? “O jequibau não é vertente
de nada. É um ritmo pentatônico, muito diferente
da marcação dois por dois que se vê, por exemplo,
no samba”, explica Albanese. Também não repete a
divisão jazzística de Take five, composição de Paul
Desmond imortalizada pelo piano de Dave Brubeck.
Take five, como observa Albanese, caminha por um
compasso de três e outro de dois tempos, e não por
um único compasso de cinco tempos.
Por sua originalidade e sofisticação rítmica, o
jequibau é reverenciado por todos que estudam
e amam a música brasileira, aqui e lá fora. Sadao
Watanabe, Andy Williams, Vic Damone e Uccio
Gaeta o interpretaram. No Brasil, Agnaldo Rayol,
Elza Laranjeira e o Zimbo Trio, entre muitos outros
cantores e conjuntos de renome, também o fizeram.
Albanese e Pereira foram gravados em 23 países.
Conversar com Mário Albanese é submeter-se a uma
sessão da velha e boa prosa. Ele recebeu a reportagem
em sua casa numa tarde de agosto para saber
um pouco sobre sua vida de músico e advogado.
“Minha mãe me dizia: você nasceu músico. Agora,
escolha a sua profissão”, contou. Se músico foi
desde sempre, advogado tornou-se após formar-se
na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
em 1956, tendo atuado principalmente na área de
direitos autorais, sobre a qual recorda: “Roubava-se
de todo mundo, não se cumpria nada”.
Há 50 anos Albanese é funcionário da Companhia de
Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estado de
São Paulo (Cetesb), o que não o impediu, ao longo
desse tempo, de produzir ou apresentar programas
nas rádios Nacional, Record, Bandeirantes e outras,
e nas TVs Cultura, Tupi, Excelsior, Record e Bandeirantes,
paralelamente à intensa carreira musical.
Mário Albanese é a música personificada. Inevitável
perguntar-lhe sobre suas preferências atuais.
“Gosto muito da sinceridade e da improvisação do
Hermeto Paschoal”, afirma, ressalvando que, afora
a obra do genial compositor e multi-instrumentista
nordestino, só vê “adaptações e mistura de ritmos”
em vez de criação. E não deixa de ironizar o repórter:
“Vocês costumam entrevistar intérpretes. Músico é
outra coisa. Músico é uma pessoa criativa”.
O jequibau viajou o mundo sem que Albanese viajasse
junto, mas o percurso do ritmo por ele criado
pode ser atestado entre molduras nas paredes de
seu apartamento: foram três Discos de Ouro no
Festival Internacional de Caracas, em 1972, entre
muitas outras condecorações nacionais e internacionais.
Artista puro, antes de tudo um criador, Mário Albanese
não dá explicações formais para as origens da
sua música. Considera-a brasileira pelo simples fato
de que seu criador é brasileiro. De outra parte, exalta
o jazz por seu caráter multicultural: “No Pós-Guerra,
a miscigenação estendeu-se para a música, o que
favoreceu o improviso. Jazz é sobretudo improviso”.
Pianista, ele considerava o violão um instrumento
menos nobre. Até conhecer Aníbal Augusto Sardinha,
ou Garoto, o principal violonista popular para
nove em cada dez estudiosos da música brasileira.
Garoto influenciou, entre outros, Baden Powell,
Rafael Rabello, Dino 7 Cordas e João Gilberto.
Morreu em 1955, aos 40 anos, e Albanese não se
esquece dele. “Quando vi Garoto tocar Holiday for
strings no violão, eu não sabia o que falar nem o
que fazer. Ficamos muito amigos, e isso foi como
tivesse ouvido dele: ‘prossiga, pois você tem jeito’”.
Aos 86 anos, cinco filhos, dois casamentos, palmeirense,
Mário Albanese brinca quando diz não saber
como pôde dar-se bem na música, pois não bebe,
não fuma e pratica esportes. É fonte inesgotável
de casos vividos no ambiente musical, casos de
uma época em que a música brasileira efervescia
em talento e originalidade, tempo em que música
popular não era sinônimo de baixa qualidade. “Não
é por que existe a música clássica que não podemos
ter música popular sofisticada, de qualidade”,
sentencia.
“Vocês costumam
entrevistar intérpretes.
Músico é outra coisa.
Músico é uma pessoa
criativa”
Mário Albanese: “O jequibau é um ritmo pentatônico, muito diferente
da marcação dois por dois que se vê, por exemplo, no samba”
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PERFIL
Ricardo Bastos/CAASP