Jornal do Advogado – Ano XLIV – nº 445 – DEZ-2018/JAN-2019
SÃO PAULO
PRERROGATIVA DE FORO PARA POLÍTICOS?
Advogado criminalista e professor do Instituto de Direito Público de São Paulo
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Não
João Paulo Martinelli
Cristovão Bernardo
foro por prerrogativa de função não é um privilégio de
quem exerce um cargo político. Trata-se de um instrumento
jurídico que busca o julgamento mais eficaz de quem, em
tese, pode usar de sua influência sobre o órgão julgador
e, portanto, precisa ser conduzido a julgadores mais experientes
e com respaldo da superioridade hierárquica na
estrutura do Poder Judiciário. Não significa que o juiz de
primeira instância não tenha capacidade técnica de decidir,
mas há envolvimento de uma relação de poder que pode
comprometer desde a investigação até a acusação e o
julgamento.
Em primeiro lugar, cabe destacar que a Constituição Federal não restringe o
alcance do foro por prerrogativa de função. A interpretação dada pelo STF viola
o texto da Carta Magna como forma de dar satisfação
Somente uma Emenda Constitucional pode
modificar o alcance do foro por prerrogativa de
função, por isso é temeroso o ativismo judicial
que invade a atribuição do parlamento
à sociedade, quando, na verdade, o papel de
nossa mais alta Corte deveria ser contramajoritária
para manter a vigência dos valores constitucionais.
Somente uma Emenda Constitucional pode modificar
o alcance do foro por prerrogativa de função,
por isso é temeroso o ativismo judicial que invade
a atribuição do parlamento.
Do ponto de vista pragmático, há dificuldades de
delimitar os crimes praticados em razão do cargo em algumas situações.
Quando o fato envolvido configura crime contra a Administração Pública
(crime próprio), não há muitas dúvidas. Não obstante, quando for um crime
comum, nem sempre a diferença é simples. Um deputado, por exemplo, pode
usar de seu cargo para ampliar sua rede de relacionamentos e lavar dinheiro
por meio de empresa de fachada, sem que isso tenha relação necessária com
seu cargo. A lavagem pode ser praticada por qualquer um, mas a prospecção
de valores é mais fácil quando o agente ocupa importante cargo político. É
muito complicado atestar que alguém usou de posição privilegiada para criar
uma rede de relacionamentos sem a qual não poderia praticar a lavagem.
Outra dúvida que paira sobre o crime cometido em razão do cargo diz respeito
ao término ou à mudança de mandato. Um crime praticado por governador,
no exercício de um mandato, deve ser julgado pelo Tribunal de Justiça, caso
ele seja reeleito, ou por órgão da primeira instância? O novo mandato deve
ser considerado a continuação do primeiro para fins de foro? E no caso de
um senador que pratica um delito em razão do cargo e, posteriormente,
elege-se deputado? Essa restrição determinada por maioria do STF traz
muitas dúvidas que merecem maior reflexão e uma construção dogmática
muito bem elaborada. No entanto, frise-se, essas restrições não possuem
previsão constitucional.
A única hipótese de restrição ao foro compatível com nossa Carta Magna é a
manutenção do processo na instância originária quando já estiver na fase de
saneamento. Uma vez que a instrução tenha terminado e as partes apresentado
os memoriais, caberá ao juiz que colheu as provas
julgar o réu, mesmo que este tenha assumido ou
deixado cargo com prerrogativa. O desenvolvimento
da instrução criminal, a parte mais importante do
processo, quando o réu tem a oportunidade de
exercer a ampla defesa, deve ocorrer no foro por
prerrogativa e a decisão cabe a quem acompanhou
a produção das provas de perto.
É claro que há alguns problemas que envolvem
o julgamento por competência originária nos tribunais superiores. Um dos
argumentos contrários é o tempo para a conclusão de um julgamento, uma
vez que a pauta desses tribunais é congestionada. Para resolver essa questão,
é essencial que o Estado, maior litigante de todos, deixe de ocupar indevidamente
o calendário dos órgãos julgadores, e isso só será possível com o
fim do recurso necessário. Se a advocacia pública desentupir os tribunais, o
julgamento de ações penais será mais ágil e o trânsito em julgado virá com
rapidez, pois não haverá tantas instâncias para recorrer. Ademais, a demora
pode ser ainda maior se o processo começar em primeira instância, já que
haverá mais recursos disponíveis em mais graus de jurisdição.