cidadãos –, cujos direitos humanos e constitucionais
estão sendo violados diariamente. Igualmente urgente,
são as implicações da enorme desigualdade econômica
que surgiu na esteira da globalização e do capitalismo
neoliberal. E não devemos esquecer a iminente catástrofe
planetária da mudança climática, cujas dimensões
dos direitos humanos só serão plenamente reveladas à
medida que mais e mais a Terra se tornar inabitável por
causa do clima cada vez mais extremo e da degradação,
e eventual desaparecimento, de alimentos e água em
muitas partes do mundo.
Em 2017, a Anistia Internacional divulgou um ranking
de países onde há número recorde de ativistas assassinados,
com Brasil no topo. Por que há essa reação
violenta?
Se eu tivesse que oferecer uma resposta de uma só palavra,
seria “medo”, especificamente o medo da liberdade
e o medo de que o comprometimento com a cultura dos
direitos humanos levasse a demandas por uma justiça
democrática. Vivemos num mundo em que aqueles que
se opõem aos direitos humanos são motivados, no todo
ou em parte, por um ódio à própria ideia de democracia
e de Estado de Direito, o que consideram ameaças aos
seus interesses, poder e privilégio. A violência contra ativistas
de direitos humanos no Brasil, como em qualquer
outra parte, reflete um cálculo cínico de que ninguém
vai se importar. Um dos motivos pelos quais os amigos
dos direitos humanos em todo o mundo apoiaram o
movimento de justiça social que surgiu aqui no Brasil,
após o assassinato em março, no Rio de Janeiro, da
ativista e vereadora Marielle Franco, deve mostrar que
a comunidade internacional se importa profundamente
com a segurança e proteção daqueles que estão organizando
e liderando populações vulneráveis na demanda
pelo “direito de ter direitos”.
A Lei do Feminicídio no Brasil agrava a pena pelo
assassinato de mulheres devido ao gênero. Segundo a
Organização Mundial da Saúde, a taxa de feminicídio
no país é a quinta maior do mundo. A legislação é
suficiente para mudar essa cultura?
São estatísticas horríveis. O problema da violência contra
as mulheres é um escândalo dos direitos humanos.
As condições culturais são tanto uma causa quanto
consequência da violência baseada em gênero. Há um
trabalho cultural importante a ser feito para mudar os
corações e mentes de homens e mulheres. Considere o
ataque ao que eufemisticamente chamam de “ideologia
de gênero” por brasileiros cujo alvo real é o sexo e a
igualdade sexual, equidade e inclusão. O movimento
“ideologia anti-gênero” tem sido muito eficaz na mobilização
de uma “política de significado” cultural que
explora e manipula os medos e a ansiedade das pessoas
em relação às mudanças sociais. Essa política cultural
deve ser satisfeita em seu próprio terreno com estratégias
que exponham a pobreza de uma visão do Brasil,
diante de sua diversidade, em que só podem ter um
SÃO PAULO
tipo de família ou um tipo de intimidade, ou apenas uma
maneira de amor ou de viver a vida. O Direito sempre foi
uma arena central para codificar e legitimar o controle
que os homens, como grupo social, exerceram e continuam
exercendo sobre as mulheres. Continuará sendo
uma ferramenta importante no combate às ideologias
de supremacia, dominação masculina e a negação do
pluralismo democrático. É o que o grande advogado e
juiz sul-africano Albie Sachs chamou de “o direito de
ser diferente”.
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão há
130 anos. Reflexo: a população negra apresenta
baixa inserção socioeconômica. Pode-se resolver
essa distorção?
O primeiro passo é reconhecer o poder e a presença
contínuos em todas as instituições brasileiras da desigualdade
racial. O mito nacional brasileiro de “democracia
racial” insiste, nas palavras de um dos primeiros
livros que li sobre o assunto: “não somos racistas”. É
justamente esse “racismo sem racismo” que normalizou
a desvantagem econômica, a impotência política e a exclusão
social, que se concentram tão esmagadora e desproporcionalmente
Thomass
nas comunidades de cor. As pessoas
de ascendência africana representam mais da metade
da população do país, mas ganham 46% menos do que
os brasileiros brancos. Alguém poderia argumentar que
essa desigualdade econômica é uma função da classe
social e não da cor da pele, mas quando nos voltamos
para as instituições e notamos que 71% das vagas no
Congresso são ocupadas por brancos, levanta-se a
suspeita de que essas desigualdades e desequilíbrios
são tanto sobre raça quanto sobre poder econômico.
No Brasil, parte da população avalia negativamente
os direitos humanos, vinculando-os à defesa de
criminosos. Como esclarecer sua real relevância?
Os advogados têm um dever profissional, cívico e moral,
de educar o público sobre a estranha e inquietante
semelhança entre esse ataque aos direitos humanos (e,
por implicação, ao devido processo e a regra do direito,
a lei) e os argumentos contra o devido processo e o
Estado de Direito que os nacional-socialistas tomaram
depois na Alemanha nazista. A criminalização dos direitos
humanos, ou a associação dos direitos humanos
com o crime e os criminosos, me parece uma versão da
política “nós e eles” que Jason Stanley identificou como
uma das características centrais do autoritarismo. Eu sei
que estas são palavras fortes, mas a história nos ensina
que é apenas um pequeno passo do armamento da lei e
do argumento de que somente os criminosos recorrem
aos direitos humanos à ideia de que os criminosos não
são humanos (ou pelo menos não da maneira que nós
“somos humanos”) e, portanto, não precisam receber
nenhum direito.
A Constituição brasileira completou 30 anos, com
texto avançado sobre direitos e garantias individuais.
Jornal do Advogado – Ano XLIV – nº 445 – DEZ-2018/JAN-2019
Em termos práticos, o Estado precisa avançar em
relação a esses direitos. O que poderia explicar essa
incompatibilidade?
A proteção dos direitos individuais deve ser buscada, primeiro
e principalmente, nos limites estruturais do poder
do governo, naqueles freios e contrapesos que dificultam
que qualquer setor, governo, ou o estado como um todo,
viole os direitos das pessoas. Não sou especialista em
teoria constitucional brasileira, mas, como observador
estrangeiro, percebo a ausência nas instituições políticas
do sistema de “freios e contrapesos” que não apenas
separa Poder Legislativo, Judiciário e Executivo, mas
também concessões a funcionários em cada setor do
governo, o motivo e os meios para restringir o excesso
de funcionários dos outros. Como observou o professor
Torquato Jardim em uma palestra de 2017 em
Washington, o sistema brasileiro teve uma tendência a
concentrar o poder nas mãos do Executivo: presidente,
governadores e prefeitos. O risco é que aqueles que são
cobrados para fazer cumprir a lei sentirão que a lei não se
aplica a eles. É essa amoralidade política que não apenas
torna as proteções e garantias dos direitos individuais
insignificantes, como também gera desprezo por um dos
princípios centrais do constitucionalismo democrático:
a ideia de que nenhum homem ou mulher, nem mesmo
aqueles em posições de alto poder, está acima da lei.
A fundação da ONU, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos e o julgamento de crimes contra
a humanidade ocorreram após a II Guerra Mundial.
Estruturas como o Tribunal Penal Internacional foram
criadas. Alguma lacuna que precisa ser preenchida?
A história dos direitos humanos não terminou. Aqueles
de nós que estão comprometidos em escrever o futuro
dos direitos humanos e defendê-los devem insistir na
integridade e independência de uma esfera e discurso públicos,
que não esteja sob o controle de direitos humanos
ou requisitado pelo sistema estatal internacional (e isso
incluiria a ONU e o Tribunal Penal). Um dos principais
desafios normativos e estruturais que os direitos humanos
e os advogados enfrentam é mobilizar um eleitorado
internacional dos “governados” (na expressão de Michel
Feher) que se solidarizará com o refugiado, e ficará ao
lado dos apátridas cuja perda de cidadania colocou sua
própria humanidade na balança. Este é um desafio em
que o sistema estatal global, por sua própria natureza,
não tem interesse, para o qual pode ser indiferente e até
mesmo hostil. A ideia da “regra do direito dos direitos
humanos” dependerá da disposição daqueles que, na
sociedade civil internacional, são cidadãos que se comprometem
com “políticas não governamentais” centradas
nos direitos humanos dos apátridas, e o reconhecimento
de que vivemos em um mundo interconectado de “destino
vinculado” (para usar o termo de Michael Dawson).
Um mundo em que o refugiado cujo direito aos direitos
humanos eu defendo hoje, poderia um dia, ser a mãe
do melhor amigo da minha filha, meu genro ou primo, o
vizinho, um colega estimado, um aluno favorito... ou eu.
“A violência contra ativistas de direitos humanos no
Brasil, como em qualquer outra parte, reflete um cálculo
cínico de que ninguém vai se importar”
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