O difícil diagnóstico
das doenças raras
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SAÚDE
Q
O cientista Stephen Hawking foi
emblemático na luta contra a
esclerose lateral amiotrófica
Quatrocentos milhões de pessoas no mundo sofrem de
alguma doença rara. Dessas, 13 milhões são brasileiras, e
para fazer parte das estatísticas enfrentam uma odisseia:
falta de conhecimento médico (o que provoca diagnóstico
tardio), burocracia para acesso a tratamentos caríssimos
(quando existem) e desrespeito da população.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como
doenças raras aquelas enfermidades que afetam no máximo
65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. Atualmente, há um
universo de oito mil catalogadas. Elas atingem, sobretudo,
crianças de até cinco anos.
Entre essas enfermidades estão males como a esclerose
lateral amiotrófica (ELA), mal degenerativo dos neurônios
motores, da qual sofreu o físico britânico Stephen Hawking
até sua morte em março deste ano. Portadores menos ilustres
dessas patologias penam na busca por diagnóstico, seja pelos
sintomas, que muitas vezes são confundidos com outras
patologias, seja pela carência de informação ou mesmo pelo
despreparo dos médicos. “O diagnóstico tardio é um sério
problema quando a gente fala de doenças raras, pois estas
são progressivas, debilitantes e até mesmo incapacitantes”,
diz o geneticista João Gabriel Daher, médico colaborador em
doenças raras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A dificuldade na descoberta foi enfrentada por Raquel Martins
Oliveira. Ela nasceu com angiodema hereditário (AEH),
uma doença genética pouco conhecida, caracterizada por
episódios recorrentes de inchaços (edemas) subcutâneos
das mãos, dos pés, da face, dos órgãos genitais, bem como
das mucosas do trato gastrintestinal, da laringe e de outros
órgãos internos, como o intestino. Desde muito nova Raquel
dava entrada em hospitais com fortes dores abdominais. Os
médicos sempre lhe receitavam remédio para verminose.
Quando a manifestação era por meio de edemas nas mãos
e no rosto, era diagnosticada com quadro alérgico. Em dois
momentos, quando as manifestações internas foram mais
intensas, ela foi levada à mesa de cirurgia. Nesses episódios
de diagnósticos equivocados, teve as amigdalas e o apêndice
retirados desnecessariamente. O diagnóstico correto só veio
em 1973, quando ela tinha 28 anos. Ao sofrer com uma crise
aguda de inchaço nas mãos e ser encaminhada ao Hospital
das Clínicas de São Paulo, descobriu o que de fato tinha.
Dedicado às questões relativas a doenças raras há mais de
uma década, João Gabriel Daher diz que pesquisas realizadas
em todo o mundo constataram que o diagnóstico leva,
no mínimo, cinco anos para ocorrer. “Pacientes chegam
a procurar até dez médicos antes de ter um diagnóstico
preciso”, afirma.
A demora deve-se, entre outros fatores, à escassez de geneticistas
e à concentração dos centros de referência no Sul
e Sudeste. No Brasil, há pouco mais de 150 geneticistas, o
equivalente a um por um milhão de brasileiros. A Organização
Mundial da Saúde recomenda que haja um geneticista
para cada 100 mil habitantes. O déficit agrava o problema
do diagnóstico, porque 80% das doenças raras decorrem de
fatores genéticos. Os outros 20% estão distribuídos entre
causas ambientais, infecciosas e imunológicas.
Para tentar aliviar esse gargalo, Daher defende a ampliação
da triagem neonatal na rede pública. Rápido, o famoso
teste do pezinho é feito nas maternidades após 48 horas
de vida do bebê, mas detecta apenas seis patologias (hipotireoidismo
congênito, fenilcetonúria, anemia falciforme e
fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência
de biotinidase). “Nos Estados Unidos, o teste mais simples
no recém-nascido detecta 55 patologias, dentre as quais
encontram-se várias doenças raras”, compara.
A maioria dos remédios que combatem a evolução de
doenças raras – isto quando eles existem – é de finalidade
específica, de alto custo e sem similar. São as chamadas
drogas órfãs, que despertam pouco interesse da indústria
farmacêutica em virtude do pequeno número de pacientes
afetados, mas que fazem diferença na qualidade de vida
desses doentes. A maioria dos protocolos do Sistema Único
de Saúde (SUS) não incorpora os medicamentos órfãos,
apenas drogas convencionais. A solução para boa parte dos
portadores dessas patologias é a ação judicial.
Entrar com processo na Justiça é trabalhoso, muitas vezes
as decisões são temporárias. O tratamento é garantido por
alguns meses e, depois, é preciso reabrir o processo.
Em 2014 o Ministério da Saúde, por meio de uma portaria,
criou a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas
com Doenças Raras. A iniciativa visa a proporcionar acesso
a serviços e cuidados adequados aos pacientes diagnosticados
com alguma forma de doença rara e, quando for o caso,
acesso a tratamentos disponíveis no mercado, inclusive por
meio de mecanismos diferenciados de registro sanitário e a
incorporação de medicamentos órfãos pelo SUS.
Mas, segundo especialistas, mesmo depois de quatro anos,
pouco do que havia sido proposto foi colocado em prática.
Agora, encontra-se para análise na Câmara dos Deputados
o Projeto de Lei da Câmara n° 56, de 2016, que institui uma
nova Política Nacional para Doenças Raras no âmbito do
SUS para tentar fazer valer de fato o direito desses pacientes.
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