Jornal do Advogado – Ano XLIV – nº 446 – Fevereiro de 2019
Ricardo Luiz de Toledo
Santos Filho
Mestre em Direito Penal pela USP
e advogado criminal,
é vice-presidente da OAB São Paulo
NÃO
Jornal do Advogado I Fevereiro-2019 13
SÃO PAULO
Há alguns anos, alertou Bernd Schünemann que estava em curso verdadeira
“marcha triunfal do modelo processual penal norte-americano sobre o
mundo”. O instituto estadunidense do plea bargain – que se pretende adotar
em território nacional de forma assemelhada – é mais um exemplo disso.
Com efeito, o recém-apresentado Projeto de Lei Anticrime do Ministério da
Justiça e da Segurança Pública traz, em seu bojo, “proposta de acordo de
não persecução”, em que busca alterações nos artigos 28 e 395 do Código
de Processo Penal.
Não se desconhece, em absoluto, que a morosidade judiciária sinaliza para
a necessidade da reestruturação do sistema penal, a desaguar na tendência
de ampliação da chamada Justiça negocial. Mas a adoção de plea bargain
entre nós não parece ser a melhor solução.
Em breves linhas, o plea bargain se caracteriza por um modelo de procedimento
sem julgamento, que prescinde da comprovação da culpa ou
responsabilidade do agente, o qual, por sua vez, renuncia ao seu inalienável
direito de defesa para, em contrapartida, receber sanção menos gravosa.
Em suma: melhor aceitar pena mais branda do que postular a absolvição.
Extraem-se das experiências internacionais (que, aliás, estão revisando a
aplicação desse modelo) e de abalizada doutrina sobre a matéria, que “o plea
bargain no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio,
que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar
autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo
ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e
insegurança”, segundo Aury Lopes Jr.
Diversas problemáticas poderiam aqui ser destacadas com a adoção desse
instituto no ordenamento pátrio, a começar pela incompatibilidade entre o
sistema norte-americano (common law) e o brasileiro (civil law).
Ademais, é inegável o caráter coercitivo do instituto, que acua o investigado,
uma vez que se vê compelido a assumir a responsabilidade mesmo sem ter
sido formalmente acusado, eis que o momento consumativo da proposta
negocial restou estabelecido logo após o término do inquérito policial, antes
mesmo da instrução criminal sob o crivo do contraditório. Faz-se aqui rememorar
o vetusto adágio jurídico: “mais vale um mau acordo do que uma
boa demanda”. Poderia essa circunstância – que até caberia na seara do
Direito Civil, em que prepondera a disponibilidade dos bens – se destinar,
no campo das liberdades públicas, a quem está obrigado a recusar o direito
de provar sua inocência? Certamente não!
Quem vivencia o quotidiano do Direito Penal, em tempos de delação premiada
incipiente e da busca contínua pelo recrudescimento penal, sabe
que, para o cidadão, é perturbadora a possibilidade de se ver penalizado,
ainda que despida de plausibilidade a imputação que se pretende direcionar,
pois o período de tratativas vem comumente permeado pelas explícitas
advertências de que, não se submetendo à negociação que lhe é imposta
unilateralmente, poderá sofrer, ao fim e ao cabo, draconiana sanção...
Nas palavras do professor norte-americano John Langbein, “nós coagimos
o acusado contra quem encontramos uma causa provável a confessar a
sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes; não
usamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar as
suas pernas. Mas como os europeus de séculos atrás, que empregavam
essas máquinas, nós fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à
garantia constitucional do direito a um julgamento”.
Nesse ponto concentra-se outra situação preocupante: o desequilíbrio entre
as partes litigantes na controvérsia, vulneração à premissa básica para
qualquer sistema jurídico que se caracterize pela equidade, pela paridade
e pela isonomia processual.
Se se revela incontroverso que os modelos penal e processual penal precisam
de aprimoramento, também se mostra correto afirmar que as modificações
não podem aniquilar direitos fundamentais do cidadão e fulminar
conquistas civilizatórias, como recorrentemente bradado pelo presidente da
OAB SP, Caio Augusto Silva dos Santos.
Diversas
problemáticas
poderiam aqui
ser destacadas
com a adoção
desse instituto
no ordenamento
pátrio, a
começar pela
incompatibilidade
entre o sistema
norte-americano
(common law)
e o brasileiro
(civil law)
o “plea bargain”?
José Luís da Conceição