Jornal da Advocacia – Ano XLIV – nº 448
“A chamada crise do MEC pode, por um lado, mobilizar
a comunidade científica, educadores, sociedade em geral,
estudantes e seus familiares na defesa da educação como agenda
estratégica para o Brasil”
ocorreu em outros países neste mesmo período. Se adotarmos o conceito de alfabetismo
funcional, apenas sete entre dez brasileiros, entre 15 e 64 anos, podem ser considerados
funcionalmente alfabetizados, conforme pesquisa do Indicador de Alfabetismo Funcional
(INAF) em 2018. Isto demonstra que há muito trabalho pela frente para solucionarmos este
grave problema.
– Após a determinação constitucional de universalização do ensino (1988), que se
somou à imposição do Fundo Monetário Internacional (1990), o País ampliou número
de vagas, equacionando a questão quantitativa. Foi mantida a qualidade ou houve
comprometimento do aprendizado em função de resultados?
– Na verdade, a pressão por uma escola que pudesse atender todos os segmentos da população
já estava ocorrendo desde o início do século passado, diante da massa de população
analfabeta. Cenário incompatível com as mudanças sociais e econômicas que vão ocorrer ao
longo do século em nosso país, em especial a necessidade de mão de obra qualificada para
atender o avanço da industrialização brasileira. A discussão da qualidade entra na agenda
com os chamados Pioneiros da Educação, a partir do Manifesto de 1932. O “Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova” trazia, além do diagnóstico da situação da educação brasileira,
prescrições para reverter o cenário presente. Este processo de diagnosticar e definir metas
e estratégias só é retomado em 2001, com o primeiro Plano Nacional de Educação. São
quase 70 anos entre o Manifesto dos Pioneiros e o PNE (2001-2010). Perdemos um tempo
precioso para que a qualidade da educação pudesse ser transformada em uma agenda
nacional. Com o avanço das avalições de sistema em nível nacional, a partir da década de
1990, as chamadas avaliações padronizadas passam a ser desenvolvidas com o objetivo de
medir o quanto os estudantes de todo o Brasil estão, de fato, aprendendo e tentar reverter
o quadro da baixa qualidade do ensino e os altos índices de repetência e evasão escolar.
– Quais seriam as temáticas prioritárias para um projeto educacional que reduza
desigualdades e aumente a qualificação da educação em diferentes níveis escolares?
– Pensando neste desafio, o Todos Pela Educação (TPE) lançou em 2018 o documento
Educação Já que reuniu diversos especialistas e organizações, num esforço suprapartidário,
para elaborar uma proposta técnica contendo estratégia para a Educação Básica e prioridades
para o governo federal (2019/2022). O relatório traz recomendações baseadas em
diagnósticos detalhados, referenciados em evidências e experiências exitosas nacionais e
internacionais. Foram definidas sete prioridades: alfabetização de todos até os oito anos de
idade; efetivação da Base Nacional Comum Curricular; financiamento e equidade; professor:
carreira e formação; governança e gestão das redes: novo modelo de Ensino Médio;
primeira infância. Este esforço do TPE e de seus apoiadores, a meu ver, será fundamental
para colocar a educação na agenda estratégica dos governos e se transformar, de fato,
num compromisso nacional.
– É correto esperar que a escola ofereça educação para a cidadania, indo além da
instrução formal do indivíduo?
– A escola é uma instituição eleita pela sociedade para socializar os saberes construídos,
acumulados pela humanidade ao longo dos tempos. Pois bem, a sua função tem sido
discutida intensamente e seu papel tem sido revisto desde sua criação como instituição.
Para além da socialização dos saberes – por meio da garantia da aprendizagem de conhecimentos
e habilidades –, a instituição escolar tem uma clara função social, capacitando
nossos estudantes para se tornarem cidadãos autônomos por meio do desenvolvimento
de suas potencialidades. Vale destacar que, sem ter acesso ao conhecimento formal e o
desenvolvimento de competências necessárias para interagir em sociedade, dificilmente
este indivíduo está capacitado para se tornar um cidadão pleno.
– O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) consegue medir os resultados em
educação fundamental e média?
– Em primeiro lugar, destaco que o ENEM tem sido utilizado, equivocamente, para fazer
ranking das escolas ou sistemas de ensino. O ENEM avalia o desempenho escolar ao final
da Educação Básica que, desde 1998, é aplicado com vistas ao acesso à Educação Superior
e realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, Inep. Para avaliar o sistema educacional em escala nacional, desde a Educação
Infantil até o final do Ensino Médio, há uma política que já vem se consolidando há décadas
no Brasil. No Ensino Fundamental, anos iniciais, os estudantes do 3º ano fazem a Avaliação
Nacional de Alfabetização (ANA) aplicada nos anos de 2013, 2014 e 2016, portanto, estabelecendo
uma série histórica para parametrizar as políticas para esta etapa importante da
escolarização básica. Esta avaliação ganhou notoriedade no início deste ano quando foi
cenário para decisões ambíguas do Ministério da Educação que anunciou seu cancelamento,
depois sua manutenção e, recentemente, deixando de ser censitária para ser amostral. Para
os anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, há um sistema de avaliação consolidado
conhecido como Sistema de Avalição da Educação Básica (SAEB). Para o Ensino
Fundamental, a prova é aplicada, desde 2005, para alunos do 5º e 9º anos com questões
de Língua Portuguesa (leitura) e Matemática (resolução de problemas). Para os 9º anos, a
partir deste ano, estava prevista a inclusão de questões de Ciências Humanas e Ciências
da Natureza. O mesmo sistema de avalição, o SAEB, também abrange os estudantes da
3ª série do Ensino Médio avaliando itens de Matemática e Língua Portuguesa que, a partir
de 2017, deixou de ser amostral e passou a ser censitária.
– Há dados ou número consistente de denúncias que sustentem a afirmação de que
há doutrinação nas escolas e faculdades?
– Cada vez mais precisamos focar nossas afirmações em dados empíricos e em evidências.
Desconheço estudos ou pesquisas sobre o tema que possam corroborar com a afirmação
que há “doutrinação” nas escolas e faculdades. Penso que o debate sobre este assunto,
infelizmente, apenas nos desvia de temas relevantes sobre a educação que necessitam
ser discutidos e encaminhados com urgência e acabam sendo ofuscados com uma pseudo
agenda educacional.
– A regulação proposta para o ensino domiciliar pode minorar problemas em relação
à carência educacional do País?
– Este é um tema bastante controverso e gera debates intensos entre especialistas,
profissionais da educação e sociedade em geral. Há um projeto de lei encaminhado pelo
presidente da República, que define as regras para as famílias que optam por educar os
filhos em casa, conhecidos como homeschooling. O projeto de lei, que deverá tramitar no
Congresso, traz obrigações para as famílias, tais como o cadastro em uma plataforma a ser
desenvolvida pelo Ministério da Educação e a possibilidade de avaliação e de processos de
recuperação pelos sistemas educacionais. O tema é recorrente no Congresso tendo sido
apresentado pela primeira vez em 1994. Todas as propostas, desde então, foram arquivadas.
Atualmente tramitam três projetos na Câmara dos Deputados e dois no Senado. Em
2018 o Supremo Tribunal Federal apreciou a matéria ao julgar um recurso específico do
Rio Grande do Sul, com repercussão geral sobre todos os outros processos desse tema,
e negou a possibilidade do ensino domiciliar por não haver legislação que regulamente as
regras aplicáveis a essa modalidade. Respeito a posição dos pais que defendem e lutam
pelos direitos de educar os filhos em casa, porém, como especialista em educação, acredito
que a convivência e a interação com seus pares sejam fundamentais para o desenvolvimento
integral das crianças e jovens. É no espaço escolar que os estudantes ampliam a capacidade
de diálogo, de argumentação, respeito à diversidade, entre outras habilidades importantes
para a convivência em sociedade.
– Podemos creditar às falhas do sistema educacional a facilidade com que as chamadas
fake news, mentiras e boatos, se propagam nas redes sociais?
– As pessoas que criam ou que disseminam fake news não são, exclusivamente, pessoas
que não tiveram acesso à educação formal ou tiveram uma formação aligeirada. Este é um
fenômeno mundial abrangendo todas as classes sociais e, inclusive, podendo influenciar
significativamente processos de interesse público como pleitos eleitorais. Para combater a
propagação de notícias falsas faz-se necessário o envolvimento de todos, passando pelo
indivíduo que recebe a notícia e precisa checar seu conteúdo antes de propagá-la, pelos
meios de comunicação que têm condições de desmenti-la, pelas empresas responsáveis
por mídias e redes sociais buscando formas de controlar e inibir a propagação de notícias
falsas. A escola tem um papel relevante nesta luta contra as chamadas fake news, desde
orientar os alunos a pesquisar sobre o tema, checar fonte e data, ler atentamente a mensagem
(notícias falsas, geralmente, possuem erros ortográficos) até desenvolver o senso
crítico dos estudantes.
Jornal da Advocacia I Abril-2019 15
SÃO PAULO