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8 NA DEFESA DA MULHER OAB SP discute os limites do Estado em casos de esterilização Sem direito à defesa e às suas garantias individuais, Janaína Aparecida Quirino foi ré em uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público de São Paulo com o objetivo de compelir o município de Mococa a realizar uma cirurgia de laqueadura tubária. Por determinação judicial, Janaína foi submetida ao procedimento e esterilizada. Diante da gravidade do caso, a OAB SP abrigou audiência pública, em 26 de junho, para debater os limites do Estado em face das garantias constitucionais dos cidadãos. Além de provocar o debate, a Ordem paulista ingressou com representações disciplinares no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para questionar a atuação da magistratura e da promotoria nos casos de esterilização por determinação judicial, e solicitou à Corregedoria-Geral do TJSP que verificasse se existem outras decisões similares do mesmo magistrado. O caso ganhou notoriedade após divulgação através da imprensa, em artigo do docente da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oscar Vilhena Vieira, no dia 9 de junho. A partir daquele momento, a OAB SP começou a atuar para esclarecer o ocorrido. Um segundo acontecimento também veio à tona pela imprensa, que revelou que a jovem Tatiana Monique Dias havia sido alvo de decisão judicial determinando o mesmo procedimento em março de 2017. Na audiência pública, o presidente da OAB SP, Marcos da Costa, registrou a importância do debate sobre casos de esterilização por determinação judicial, principalmente em face dos direitos fundamentais da vítima: “Este é um caso emblemático sob diversos aspectos; do ponto de vista do processo legal, o mais sagrado direito, que é o de defesa, foi negado à senhora Janaína. Não houve nomeação de advogado dativo ou defensor público. Nos autos demonstrou-se que a senhora padecia de dependência alcoólica e química, e, portanto, requereria a nomeação de um curador especial, porque a sua vontade estava comprometida. Uma cirurgia foi determinada sem um laudo médico e é realizada uma laqueadura após o parto, o que é proibido por lei. Chega-se a apelação do município ao TJSP, mas quando o tribunal julga o recurso e evidencia que a decisão viola os direitos fundamentais, a mutilação no corpo da mulher já havia sido feita. Ao lado das questões processuais, existem outras, como, por exemplo, não se procurou alternativa para tratar a sua dependência química. Essa senhora virou um objeto processual, deixou de ser alguém que merecesse ter resguardado os seus direitos. Não se estabeleceu preocupação em favor da mulher. Quantas mulheres existem em situação análoga à dela? Quantas mulheres são dependentes e estão em dificuldades de tomar decisões? Na decisão judicial, referem-se a ela como tendo a vida desregrada, e aí entra algo de índole moral e pessoal. Pretensamente, para não permitir que uma criança sofra após nascer, passaremos a usar de política pública para mutilar todos os corpos de mulheres em situação análoga?”, questionou o presidente. Para identificar outros casos semelhantes ao da Janaína, Marcos da Costa informou ainda que a Corregedoria do TJ SP foi acionada pela OAB SP e uma correição extraordinária para a Vara em Mococa foi solicitada. Representando o Ministério Público, o promotor de Justiça e secretário executivo do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva, Roberto de Campos Andrade, adiantou que o MP irá promover internamente um ciclo de discussão sobre o tema. O presidente do Cremesp, Lavínio Nilton Camarim, colocou em questão o que seria a esterilização: “Eu perguntaria, enquanto médico, a esterilização é um tratamento ou uma mutilação? A lei de planejamento familiar diz que é preciso uma manifestação expressa da vontade, e a esterilização faz parte do planejamento familiar, mas ela é um direito, e não um dever. Este caso é sintomático, pois vivemos uma crise moral e ética. A lei é clara, e o paciente tem o livre direito de escolha cabendo a nós profissionais, médicos e instituições, de esclarecermos as opções e o que significam”, afirmou. A autonomia para o consentimento é reforçada pela docente em bioética na Rede de Educação Permanente em Bioética (RedBioética Unesco), Lívia Maria Armentano Koenigstein Zago, que ainda ressalta as três excludentes da autonomia, sendo a incapacidade, a idade e a urgência. “Este é um processo evidentemente maculado, há ilegalidades e inconstitucionalidades insuperáveis. O consentimento livre só encontra travas nos casos de incapacidade.” Para a presidente do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo, Kelly Rodrigues Melatti, o caso da Janaína expressa uma visão de mundo que se sustenta na desigualdade social: “A sociedade que vivemos, dividida por classes sociais, que tem em sua estrutura o machismo, o racismo e a LGBTfobia, há muitas Janaínas passando”, apontou. Membro do núcleo de sexualidade e gênero do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Flavia Roberta Eugênio, destacou a questão de gênero e a autonomia sobre o próprio corpo: “Não cabe ao Estado qualquer ingerência nessa esfera íntima de uma pessoa, dessa decisão particular, sobretudo de uma mulher.” Ação civil pública Autor do artigo que tornou público o caso, Oscar Vilhena Vieira explicou que o acórdão publicado pelo TJSP, após o julgamento do recurso, chamou sua atenção por trazer indignação e fugir do formalismo habitual: “Minha surpresa aumentou muito pelo instrumento utilizado, uma ação civil pública, criada em 1987 com o objetivo de assegurar direitos. Do ponto de vista jurídico, é uma contradição uma pessoa física no polo passivo como ré em uma ação civil pública, onde ela estava sendo destituída de direitos. Essa contradição soou extremamente chocante. Na própria ação civil pública, o membro do MP confessa que não há clareza da vítima, que ora se manifesta a favor, ora contra. Então, ele propõe que essa pessoa seja submetida à laqueadura, mesmo contra o seu consentimento. Não temos ainda a clareza de qual a dimensão e a extensão dessa prática ao redor do Brasil, mas o caso gerou uma enorme indignação. Houve uma mobilização de grupos, sobretudo em favor daqueles que se encontram em posição de profunda invisibilidade. Essa indignação é a faísca que nós precisamos para que processos de transformação mais profundos possam ocorrer.” Procuradora de Justiça aposentada e consultora da Comissão da Mulher Advogada, Luiza Nagib Eluf classificou o caso como estratosférico e estapafúrdio: “A nossa sociedade enxerga que somente a mãe é responsável pela criança e existe uma reprodução de preconceito de gênero. Seria mais pertinente entrar com ação civil pública para obrigar o Estado a tratar a dependência química, do que pedir a esterilização de uma mulher”. Presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina do governo de São Paulo, Maria dos Anjos Mesquita Hellmeister, pontuou sobre a violência da mutilação e da esterilização sem a manifestação expressa. Na mesma linha, a coordenadora do atendimento às vítimas de violência sexual do Hospital das Clínicas, Maria Ivete de Castro Boulos, questionou se a condição de ser mulher, negra, pobre e dependente química justificaria a perda dos direitos constitucionais. A coordenadora de políticas públicas para mulheres do Estado de São Paulo, Albertina Takiuti, relembrou audiência pública realizada em 1995 para debater a lei de esterilização e enfatizou a ameaça constante aos direitos das mulheres: “É preciso uma luta incessante. O Brasil assina acordos internacionais para proteger os direitos das mulheres, porque senão teremos adolescentes esterilizadas. Esse é o medo, que as mulheres mais vulneráveis, as mulheres negras, pobres, sejam submetidas a esse processo de esterilização. Neste caso, se ela era vulnerável, também era vulnerável nas decisões e não tinha condição psicológica para decidir algo tão definitivo quanto a esterilização.” O coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB SP, Martim de Almeida Sampaio, traçou o histórico da atuação da entidade na defesa dos direitos humanos e a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB SP, Kátia Boulos, convocou a união das entidades para a construção de uma transformação a partir deste debate. Mesma linha adotada pela a deputada estadual Célia Leão, que compôs a mesa do evento. Cristóvão Bernardo Kátia Boulos, presidente da Comissão da Mulher Advogada, fala na audiência pública promovida pela OAB SP


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