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Jornal do Advogado – Ano XLIV – nº 440 – Julho de 2018 SÃO PAULO Advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo O apego ao denominado “contato físico” entre acusado e magistrado sinaliza simples herança de um arbítrio subjetivista 13 Não Luciano Anderson de Souza Cristovão Bernardo PODE FERIR O DIREITO DE DEFESA? ma das primorosas obras de nossa literatura, Esaú e Jacó, de Machado de Assis, traz narrativa que se desenrola num período de transição nacional: a passagem da Monarquia, então desacreditada, para a República, imposta por militares. Dentre as questões suscitadas, o gênio do Cosme Velho descreve, por meio do personagem principal – Conselheiro Aires –, as contradições entre uma postura pública liberal, mas, no fundo, apegada ao atraso. Com os devidos desconto e contextualização, o paradoxo parece se aplicar ao momento atual do processo penal brasileiro. Afeito a uma herança burocrática cartorial e autoritária, fruto de um Código do Estado Novo, as pontuais atualizações do diploma, decorrentes das mudanças dos tempos, são comumente rechaçadas, quando não desvirtuadas, pelos próprios aplicadores do Direito, que tornam o avanço em retrocesso. A possibilidade de interrogatório ou oitiva de testemunhas por videoconferência parece subsumir-se a tal hipótese. Em razão dos inúmeros retardos na realização de audiências com presos, em face, principalmente, de problemas de escoltas, em 2005, legislação estadual paulista disciplinou o interrogatório on-line. A desafiante questão prática não poderia ter sido equacionada de pior forma, não pelo mérito em si, mas pelo fato de que o Estado não poderia disciplinar a matéria, não adotada pela lei federal. Pela ausência de referência no diploma processual, bem como sinalizando violações ao contraditório e à ampla defesa, o STF declarou, em 2007, a inconstitucionalidade da medida. Como, no entanto, isso se deu para caso concreto, foi editada a Lei nº 11.900/2009, acolhendo a possibilidade excepcional no CPP. Frise-se que a medida somente ocorre em caráter extraordinário, não admitindo banalização. Ela apenas é possível para: a) prevenir risco à segurança, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou possa fugir; b) viabilizar a participação do acusado no ato, quando haja relevante dificuldade para comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância; c) impedir influências sobre testemunha ou vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência; d) responder à gravíssima questão de ordem pública. As hipóteses são, assim, razoáveis, ensejando devida comprovação e decisão fundamentada, afastando-se a simples conveniência administrativa. Por conseguinte, havendo respeito à lei, por si só, não se pode falar em obliteração ao direito de defesa. No caso concreto, se isso ocorrer, ensejará a nulidade do ato. Do contrário, consagradas estarão celeridade e economia processuais, segurança pública e gravação do ato. Quanto a esse último aspecto, note-se que, Brasil afora, nem sempre a gravação ocorre ordinariamente, sendo que a ausência de videoconferência obstaria ao julgador recursal visualizar o acusado e ouvir suas palavras defensivas. Demais disso, frise-se que o apego ao denominado “contato físico” entre acusado e magistrado parece sinalizar-se como simples herança de um arbítrio subjetivista. O julgador deve se ater às provas dos autos e não a voluntarismos ou a impressões decorrentes de simpatias ou antipatias pessoais. De mais a mais, se a falta desse contato direto ocasionar algum tipo de óbice, sua defesa deverá insurgir-se contra isso e, na dúvida, o juiz há de realizar a audiência pessoal. O que não se pode é presumir antecipadamente o dano à defesa, à qual, inclusive, pode interessar a medida. Em conclusão, vê-se que a adoção da videoconferência não enseja, per se, prejuízo. No entanto, evidentemente, deve-se atentar para seu manejo prático, para fins de que não se fique na ambígua transição entre o antigo e o novo, como na sugestão do machadiano Conselheiro Aires, que recomenda ao comerciante da “Confeitaria do Império”, que deseja pintar sua placa, a que, diante das incertezas, escreva a frase somente até a metade.


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