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Em pauta, os limites do
Direito do Trabalho na
regulação de conf litos
10 Jornal da Advocacia I Maio-2019
Jorge Pinheiro Castelo
“Os novos padrões do que chamamos de
‘Direito do Trabalho líquido’ geram um conflito
emocional insolúvel”
José Luís da Conceição
A animação japonesa “A viagem de Chihiro”, de Hayao
Miyazaki, vencedora do Oscar (2003), leva a personagem
principal, uma menina de dez anos, para um mundo
espiritual. Numa jornada repleta de metáforas sobre a
sociedade e a psique humana, o roteiro a coloca diante
de um homem que lhe diz: “Você precisa conseguir um
trabalho, sem trabalho você não existe nesse mundo!”. A
mensagem é claramente a reprodução de uma condição
humana constatada pela antropologia e pela arqueologia:
há um imperativo nato humano de participar da divisão do
trabalho, presente em qualquer organização social, desde
as mais antigas e primitivas até as mais desenvolvidas
e atuais. Ou seja, como que reproduzindo um arquétipo
milenar, mulheres e homens continuam precisando do
trabalho para, além do próprio sustento material, sentirem-
-se minimamente realizados e satisfeitos.
Em 1974, Kaplan e Tausky, em “The meaning of work
among the hard-core unemployed”, questionaram uma
amostra significativa de trabalhadores: “Se você tivesse
dinheiro suficiente para manter-se confortavelmente pelo
resto da vida sem trabalhar, o que faria em relação ao seu
trabalho?”. Outros pesquisadores, em diferentes países,
já haviam feito pergunta semelhante e constataram, em
média, que 80% dos entrevistados respondem que continuariam
trabalhando. Número semelhante foi verificado
em pesquisas nas décadas de 1980, 1990 e 2000. O leque
de razões apresentadas para justificar a resposta também
se repetia: relacionamento interpessoal, ter o sentido
de vinculação, ter o que fazer, evitar o tédio e ter algum
objetivo na vida.
Para Jorge Pinheiro Castelo, presidente da Comissão de
Direito do Trabalho, esses aspectos serão fortemente atacados
pelos novos arranjos de organização do trabalho, o
que tem como resultado a produção de pessoas oprimidas
e, principalmente, deprimidas; acrescentando que a depressão
já é apontada como a doença do século XXI: “Os
novos padrões do que chamamos de ‘Direito do Trabalho
líquido’ geram um conflito emocional insolúvel, colocando
a satisfação momentânea e a não formação de hábitos
como regra, o que implica admitir uma existência irracional
e sem relações constantes, duráveis e com profundidade”.
Dadas essas dimensões, justificadas preocupações despontam
em períodos em que transformações relevantes
no modo de organização do trabalho se impõem. “Estamos
passando por um período de forte competição entre
tecnologia e mão de obra física: acredito que chegaremos
ao ponto em que até esses entregadores, via aplicativos,
não terão mais trabalho, sendo substituídos por drones
ou veículos autônomos”, crava Guilherme Miguel Gantus,
conselheiro Secional da OAB São Paulo. Ele afirma que
países mais pobres e com pouco desenvolvimento educacional,
como o Brasil, estão passando por um processo
de rebaixamento da qualidade do trabalho ofertado e, pior,
essas nações se encontram no limiar de graves crises
de desemprego que serão provocadas pela extinção de
inúmeros ofícios.
Já existem dados estatísticos comprovando que haverá
efeitos diferentes para a inserção de novas tecnologias
no mercado de trabalho de países em desenvolvimento e
outros desenvolvidos. Hoje, aqueles com elevado desenvolvimento
tecnológico – China, EUA, Alemanha, Coreia
do Sul, Japão e Finlândia – têm índices de desemprego
abaixo de 5%. Porém, como a maior parte das nações
não atingiu patamares semelhantes de preparo intelectual
da população para essas mudanças, o diagnóstico da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) é que “os
problemas de desemprego, subemprego, desigualdade e
injustiça estão se agravando, em vez de se corrigirem”.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF),
determinando que grávidas e lactantes não exerçam
atividades consideradas insalubres, é um exemplo notório
do limite da atuação do Direito no mercado de trabalho:
amplas possibilidades de intervenção qualitativa, raramente
quantitativa. No exemplo, é protegida a saúde de mães e
bebês e, por outro lado, diminui-se a quantidade de postos
de trabalho possíveis para essas mulheres. “As transformações
que o mercado de trabalho está sofrendo são
perigosas. É importante, para o futuro, entender e defender
a proteção que o Direito consegue dar ao trabalhador como
um fator positivo para a sociedade: normas trabalhistas podem
conviver com o avanço da tecnologia”, pontua Gantus.
A proposta de extinção da Justiça Trabalhista, citada
pelo governo no começo do ano e rechaçada pela OAB
SP, arrefeceu. Por outro lado, anteriormente, a reforma
trabalhista (2017) trouxe mudanças para as relações de
trabalho, cuja consequência mais imediata foi a diminuição
do número de ações nos Tribunais. Curiosamente, a
alteração que teve maior impacto para essa queda não se
deu em direito material. “Houve várias mudanças recentes
no processo do trabalho, tanto que considero existir hoje
um novo processo do trabalho. Tivemos a Lei 11.015/2014
(sistema recursal trabalhista), o novo Código de Processo
Civil e a própria reforma trabalhista. De todas as mudanças
no processo do trabalho, certamente a de maior
impacto foi a implementação dos honorários sucumbenciais
trabalhistas, cuja consequência foi o desestímulo de
aventuras judiciais”, avalia Bruno Freire e Silva, doutor em
Direito Processual pela PUC-SP.
Diante de tantas mudanças, de fato e de direito, em área
tão sensível para a vida humana, há ambiguidade sobre
alguns temas, como a tentação de frear desenvolvimento
tecnológico ou impor medidas legislativas que inviabilizem
novos modelos de negócios, decisões que limitariam
o desenvolvimento. Encontrar soluções que garantam
emprego, renda e aposentadoria prósperos para a maioria
da população é meta que ainda não foi atingida, mesmo
em boa parte de países desenvolvidos.