Jornal da Advocacia – Ano XLIV – nº 449
“A reforma tinha três grandes bandeiras: aumentar segurança
jurídica, reduzir desemprego e diminuir o número de ações. Não
reduziu o desemprego, não em números reais e impactantes; não
aumentou segurança jurídica; e, em relação ao número de ações,
reduziu drasticamente, mas não sei se o fez da melhor forma”
Jornal da Advocacia I Maio-2019 15
SÃO PAULO
negociado sobre o legislado. Quando o Brasil aprova a reforma trabalhista, a Argentina
que é um país vizinho e disputa um mercado de exportação parecido com o Brasil, se
sente pressionada para fazer reforma parecida. Dentro dessa perspectiva, comparar a
legislação brasileira com a alemã ou americana não é justo, porque elas têm culturas
distintas – sendo que os Estados Unidos não são filiados ao Direito Romano, e sim ao
common law, e temos uma lógica própria de pensar as organizações sindicais com outro
nível de representatividade e força. Esses países não teriam conseguido essa legislação
tão negociada se não estivessem em outro patamar de desenvolvimento econômico.
– O fenômeno chamado de “uberização do trabalho” traz quais desafios para o
Direito do Trabalho?
– Trazem desafios de todas as ordens. O primeiro no mundo todo seria definir se
esses trabalhadores são ou não empregados. O aplicativo tem enfrentado demandas
trabalhistas dos condutores de veículo. Esse é o primeiro ponto que o novo modelo de
negócios traz. Agora, quando falamos de “uberização”, temos, na verdade, o fenômeno
do trabalho em plataformas digitais. Têm as que simplesmente aproximam, por meio de
algoritmos, consumidores e prestadores de serviço. Melhor dos exemplos é o da pessoa
que queira disponibilizar um bem ou serviço e aquela que quer contratar, como no caso
do AirBnb, dedicado ao aluguel de imóveis. Não cabe discutir relação de emprego,
salvo alguma questão periférica relacionada com a limpeza das casas. É um tipo de
plataforma que não gera tanto impacto e discussões sobre questões trabalhistas. Nesse
caso, o preço não é definido pela plataforma digital, é definido pelo dono do bem ou
dono dos serviços. É simplesmente uma intermediação. No caso de plataformas como
Uber, que colocam à disposição o cliente e o prestador de serviços, as discussões
acerca da questão trabalhista são infindáveis. E impacta a relação do direito de trabalho
de forma intensa. A nossa legislação foi pensada na realidade do operário de fábrica,
tem três grandes pilares: onde, quando e como. Onde o trabalho é feito? Normalmente
na fábrica, no estabelecimento do empregador. Quando? No horário preestabelecido
de funcionamento da fábrica. E como? Sempre com instrumentos de trabalho, equipamentos
e maquinário do empregador. Quando se criam esses modelos de negócio
via plataforma digital, deixa de existir o ambiente de trabalho. As plataformas digitais
impactam a nossa noção de proteção do trabalho de forma direta. Quanto mais eu me
dedico a estudar o tema, mais me convenço que esses condutores de Uber precisam
de alguma forma de proteção. O que os países no mundo todo enfrentam é o dilema de
escolher entre três opções: tratar o condutor de Uber como empregado, com todos os
direitos, o que acabaria com o modelo do negócio, por conta do custo que estaria agregado
e corre risco de não ser adequado; ou tratá-lo como sujeito autônomo, que foi o
que fez o decreto presidencial no Brasil quando estabeleceu as condições de contribuição
para seguridade social dos condutores de veículo; ou então proibir as plataformas
digitais, que é o que acontece na Itália, onde a questão não foi regulamentada e a Uber
não opera. O que vem sendo utilizado, na maioria dos países que enfrentaram essa
questão, é criar uma forma intermediária de proteção, que não seja tão protetora quanto
o vínculo empregatício e nem tão desprotegida quanto o trabalho autônomo. O grande
problema é que as experiências têm mostrado que as tentativas de criar uma solução
intermediária, que se chama de “terceira via”, acabam implodindo o sistema de proteção
ou causando muito mal, gerando precarização. De fato, temos situações no mundo
assim que, sob o pretexto de criar uma condição intermediária, acabou servindo para
que pessoas protegidas se tornassem mais baratas por meio dessa nova opção.
– Quais as dimensões do trabalho na sociedade atual?
– É aquilo que Bauman chama de sociedade líquida ou de tempos líquidos, enfim,
tantas obras que passam por enfrentar esse tema. Vivemos uma época de grande
mudança, sobretudo pela tecnologia nas condições humanas, de modo geral. A desconexão
do trabalho é cada vez mais difícil em tempos de WhatsApp. Quantas vezes
acabamos conversando com colegas de profissão fora do expediente porque existe
essa ferramenta? Às vezes em horários totalmente impróprios. A tecnologia impacta
a vida humana há muito tempo. Hoje, um dos grandes problemas é estarmos, cada
vez mais, em constante regime de trabalho. Mas não é só aí que essa tecnologia vai
efetivamente mudar a nossa vida. Hoje vivemos tempos de inteligência artificial e isso
para o mercado de trabalho traz uma consequência muito grande. A tecnologia acaba
criando novos empregos e extinguindo outros antigos. O grande dilema é tentar fazer
com que, primeiro, essa criação de empregos consiga suprir a destruição dos anteriores,
o que nem sempre acontece. A tendência é criar bem menos empregos do que os
que você destrói. Um exemplo: uma agência bancária dos anos 50, do século passado,
tinha muitos empregados. Com a tecnologia, foi significativamente reduzido. Mas existe
uma categoria de bancários que não existia, o pessoal da tecnologia da informação.
O trabalho não acabou, mas ele foi substituído? Não, não foi. Porque o número é
infinitamente menor do que a quantidade de postos que foram sendo extintos por conta
da automação. Desaparecem funções como ascensoristas, cobradores de ônibus, entre
tantas outras afetadas pela tecnologia, mas, geralmente, de funções pouco qualificadas.
Na hora que falamos de inteligência artificial e ela chega a algumas profissões clássicas
tradicionais, como o Direito e a Medicina, começamos a perceber que a tecnologia
ameaça os postos de trabalho qualificados, que eram considerados protegidos.
– Mas há países com tecnologia e pleno emprego: EUA, Alemanha, Japão e Finlândia...
– A tecnologia extingue empregos, mas países desenvolvidos, que têm controle do seu
mecanismo de distribuição dos postos de trabalho e formação profissional, são capazes
de direcionar a mão de obra para onde há surgimento de novos. Essa é a grande
diferença. Há vários países que têm observatórios permanentes para verificar quais são
as profissões, onde surgirão novos postos de trabalho. Percebendo isso, interferem ao
invés de continuar insistindo naqueles onde já há uma saturação, ou ameaça de extinção
no futuro. Um exemplo fácil de visualizar seria o Ross – o primeiro robô advogado
usado nos EUA – que começa a ameaçar postos em escritórios, embora eles precisem
contratar pessoas dedicadas à tecnologia da informação. Nessas nações mais avançadas
começam a abrir mais vagas na ciência da computação, engenharia da computação
e áreas correlatas, com menos vagas no Direito. O problema aqui é que passamos por
processo massificado de estímulo à educação privada com sucateamento da pública.
Na hora que as universidades privadas passam a ter a maioria das vagas do ensino,
ofertam de acordo com o mercado. Então, cursos ligados ao setor terciário como Direito,
Administração, Contabilidade, que não demandam laboratórios e outros investimentos,
acabam tendo mais oferta do que os ligados à computação, que requerem investimentos
significativos em tecnologia. Formamos advogados, médicos, contadores, mas não
cientistas para inovar e revolucionar tecnologicamente o país.
– Sempre haverá o mínimo de organização de trabalhadores para reivindicar
direitos?
– A ideia da união do mais fraco para a defesa é instinto de sobrevivência natural. Esse
fenômeno é próprio do sindicalismo: o trabalhador, percebendo a condição de fragilidade
em relação ao empregador, se une a outros para se fortalecer. Essa reação acaba
se repetindo, independentemente do modelo de exploração. Converso muito com meus
alunos quando dou aula sobre greve, que ela, na verdade, muito mais que um direito
ou um crime, é um fato social. Se a greve for proibida, mas a situação de incômodo
for grande, ela vai eclodir como erupção vulcânica, e vimos isso nas manifestações de
junho de 2013. Você passa a ter efetivamente uma ebulição, que não acontece porque
a lei permite, mas porque a insatisfação chegou a um nível de descontrole que não há
como segurar os ânimos envolvidos na questão.