Cabrrall 13
“Coube à Assembleia Constituinte dar lugar ao
reencontro. Todos – perseguidos, banidos da política,
exilados – contribuíram para edificar essa nova Carta e
para pôr fim aos pontos obscuros deixados pela ditadura.”
xo. Logo depois, Fernando Henrique Cardoso cumpriu oito
anos de poder, o mesmo ocorreu com Lula. A Dilma ficou
no seu primeiro mandato e foi afastada por impeachment,
mas, novamente, assumiu o vice-presidente. Por que que
isso tudo aconteceu, sem interferências? Simples. Quando
a Carta atual foi elaborada, chegou-se à conclusão de que
não havia outro caminho, senão o democrático.
Quais pontos podemos destacar?
As emendas populares foram uma grande conquista,
porque tinham mais de um milhão de assinaturas, demonstrando
o engajamento de toda a nação. Foram aprovadas
várias. Mas aí vem o grande ponto de interrogação: nessa
construção da Constituição, ela não poderia ter sido melhor?
Poderia. Porém, quem haveria de imaginar que dois
anos depois cairia o muro de Berlim? Quem poderia pensar
que a União da República Soviética, com todo seu domínio
europeu, iria desfalecer? Havia no mundo dois regimes. E
essa dicotomia tomou conta também da Constituição de
1988. Se soubéssemos que o regime comunista iria por
água abaixo e o capitalista não conseguiria avançar, é claro
que a Constituinte teria outro material para trabalhar. Hoje
você enxerga melhor o cenário mundial e nacional.
O que poderia ter sido feito de diferente?
Cito um exemplo que me deixa entristecido. Saímos da
Comissão de sistematização com o sistema parlamentarista
de governo aprovado. Quando chegou para votação
no Plenário, derrubaram. Uns dizem que foi benesse. Isso
não interessa. O fato é que o presidencialismo ganhou.
Os principais países do mundo, as grandes potências – à
exceção dos Estados Unidos que têm um presidencialismo
diferente – são parlamentaristas. Chamei o Humberto
Lucena, que era o presidente do Senado, e que comandava
o pessoal a favor do presidencialismo, e disse: “Vá
correndo e diga a seu pessoal que retire o instituto da
medida provisória do texto constitucional, porque medida
provisória só pode conviver com sistema parlamentarista
de governo. Se vocês não fizerem isso, vocês vão dar ao
presidente da República o poder que nenhum ditador
teve durante toda a história de existência do Brasil”. Não
tiraram! E o que aconteceu? Temos problemas até hoje.
Estamos com mil emendas tramitando no Congresso e,
muitas delas, são apenas para atender interesses meramente
circunstanciais.
E sobre a revisão constitucional?
Essa revisão que foi feita não deu em nada. Eles (parlamentares)
não fizeram o dever de casa. E as medidas
provisórias que deveriam ter aperfeiçoado a Constituição,
transformaram a Carta em um canteiro de obras.
O que o senhor mudaria?
Eu não mudaria, eu melhoraria! Até a hora que nós a fizemos,
eu examinei 52 mil emendas. Quando peguei o bolo
que vinha das comissões temáticas, tinha mais de dois mil
artigos e a Constituição ficou reduzida a 250, fora o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. É claro que ela é
extensa e não deveria conter alguns artigos que lá estão.
O que a diferencia das anteriores?
A liberdade com que foi construída. Essa é a grande
diferença de todas as demais. Essa Constituição não foi
redigida num gabinete por um especialista na matéria
constitucional. Portanto, é mais autêntica. Por isso que
é chamada de Constituição Cidadã. As pessoas não se
lembram de que o Ato Institucional nº 5 proibia qualquer
medida judicial que tentasse atacar as medidas determinadas
pelos atos institucionais. Ou seja, você não podia
ir à Justiça se queixar por essa ou aquela razão. Hoje,
temos o direito das garantias individuais, com um artigo
que diz: “Nenhuma lesão de direito escapa da apreciação
do Poder Judiciário”. Isso é a garantia de que se você tem
o seu direito, tem de passar pelo Judiciário. Por isso que
colocamos que é vedada qualquer censura na natureza
política, ideológica e artística. Isso a diferencia de outras
constituições, porque foi feita por quem passou por
duros processos de perseguição. Se me perguntarem:
o texto constitucional foi o ideal? Não foi, é claro! Uma
das Constituições mais perfeitas do Brasil é a de 1937,
feita por um grande jurista chamado Francisco Campos.
Ela era tão perfeita que durou apenas oito anos. A nossa
Carta atual é fruto exclusivamente das camadas populares
que a integraram. Não foi fruto de um ditador. Toda
a nação participou e contribuiu para melhorar os artigos
que constam no texto.
Tem menos deveres e mais obrigações?
É uma crítica que não se pode contestar. O número de
garantias é muito maior do que os deveres. Para que
você faça essa observação tem de fazer a ressalva de que
a Constituição foi escrita quando o país estava saindo de
uma excepcionalidade institucional.
E quanto a uma nova Assembleia Constituinte...
Você faz uma Assembleia Nacional Constituinte quando se
tem uma ruptura política. Por que houve a constituinte no
Império? Porque o Brasil rompeu com Portugal. A Constituição
da República se deu porque D. Pedro II foi banido. Já
em 1930, Getúlio Vargas derrubou com a revolução o então
presidente da República. Ele prometeu a Constituição e não
fez, mas veio a Revolução de 1932, que o obrigou a fazer e
aconteceu em 1934. E a de 1946? Ocorreu porque Getúlio
foi apeado do poder. Já a do período militar se deu pela
queda de João Goulart. Em todos esses casos ocorreram
ruptura política constitucional. E a de 1988 se deu porque o
Brasil acabara de sair do regime militar. Agora, nós temos os
Tribunais superiores e o Congresso funcionando; e o Poder
Executivo tem o presidente eleito pelo voto popular, ainda
que tenha assumido o poder por conta do impeachment.
Foram muitas as pressões sofridas?
As principais foram feitas por meio de lobbys, mas eram
normais. Por exemplo, o Poder Judiciário fez o lobby para
a criação do Superior Tribunal de Justiça, que àquela altura
era Tribunal Federal de Recursos. Às vezes ouço dizer que
alguém das Forças Armadas fez pressão. A mim, como
relator, ninguém ousou fazer qualquer pressão e muito
menos ao Ulysses Guimarães. Chegou a circular a infor-
Jornal do Advogado – Ano XLIV – nº 442 – Setembro de 2018
SÃO PAULO
mação que havia um movimento para fechar o Congresso
e o Ulysses foi à tribuna dar uma resposta: “Viemos aqui
para escrever uma Constituição, não para ter medo”.
Depois rebateu críticas de alguns assessores do então
presidente José Sarney. Eles diziam que a CF de 88 não
duraria seis meses e que o país ficaria ingovernável. Hoje,
ela faz 30 anos. Essas profecias horrorosas não ficaram de
pé. Mesmo com uma crise ética e de falência moral, que
vivemos hoje, a Constituição não tropeçou. Está de pé.
Como seria o Brasil sem a Constituição de 1988?
Se não tivéssemos essa Constituição, provavelmente estaríamos
numa ditadura. O Brasil é um país que tem jeito.
Temos uma fortuna incalculável em nosso solo, nossas
riquezas minerais... Isso ficou claro em nossa Constituição.
Às vezes, fico pensando que as pessoas estão fazendo do
meio ambiente uma coisa da moda. Em 1987, já pedíamos
melhoras para o meio ambiente. Tanto que incluímos um
capítulo específico. Foi um trabalho de todos os constituintes.
Outra questão é sobre os índios. Algumas pessoas
contrárias dizem que fomos “tolos” por termos colocado
os índios na Constituição. Sempre respondo: “Os países
que não colocaram os índios na sua Constituição foram
aqueles que os dizimaram”.
O brasileiro cobra uma reforma política. A Constituição
falhou nesse aspecto?
Ela não se saiu como deveria. Não tínhamos como prever
o que aconteceria 20... 30 anos depois. Lamentavelmente,
essa parte eleitoral precisa ser reformulada.
O STF afronta a Constituição ao permitir a prisão em
2º grau?
Não diria que se trata de uma afronta, até porque o Supremo
já fez várias afrontas ao texto constitucional. Mas foi
a partir desse contexto que se ampliaram as discussões
sobre o STF estar legislando. O Poder Legislativo é quem
constrói as leis, o Executivo é quem executa e o Judiciário é
quem interpreta sua legalidade. O Supremo precisa dar um
basta nessa caminhada de legislar, cabe a ele ser o guardião
da democracia. A Constituição foi muito expressa nesse
sentido, deixando claro que a Corte é o tripé da democracia
e você não pode prescindir dela, nunca.
Advogado, o senhor foi deputado, relator constituinte, senador,
ministro da Justiça... Qual função foi a mais difícil?
A de relator pode ter sido difícil por sua complexidade e
me deu muito orgulho. Mas a advocacia me proporcionou
momentos díspares: tanto de sofrimento quanto de
altivez. Ter presidido a Ordem também me dá orgulho. E
fui presidente (1981-1983), quando explodiu a bomba do
Riocentro. Naquele período sei quantas ameaças de morte
sofri... Quando a repressão, a ditadura, é muito aguda,
quem mais se sobressai é a OAB. É pioneira, é quem sai
na frente para garantir os direitos dos cidadãos. É lógico
que quando fui relator sofria ameaças. Fiz, inclusive, um
manuscrito a Ulysses Guimarães, onde abordava os insultos,
as ofensas e as injúrias sofridas, mas não desertei,
não me omiti. Quis dar minha contribuição e consegui.